Estamos vivendo grave crise socioeconômica e, no auge da pandemia da covid-19, as pesquisas revelam que o índice de violência doméstica tem aumentado no mundo devido ao isolamento social. Como as mulheres estão confinadas com os agressores, distantes dos familiares, os riscos aumentaram. No Brasil, as estatísticas não retratam a realidade porque muitos casos nem são notificados.
Mas, com ou sem quarentena, as mulheres continuam invisíveis, em pleno século 21 — principalmente quando comparamos os espaços de poder. Porém, elas aparecem à medida em que passamos a conhecê-las melhor.
Mesmo longe dos holofotes, elas estão atuando em setores imprescindíveis na vida social. Na área da saúde brasileira, por exemplo, são 70% de mulheres que estão na linha de frente contra o coronavírus. Em nível mundial, os países que se saíram com menos danos da crise causada pela pandemia são dirigidos por mulheres, como Islândia, Nova Zelândia, Taiwan, Singapura, Noruega, Finlândia, Alemanha, Dinamarca e Bélgica.
São muitos os obstáculos. Além da misoginia, da violência e do feminicídio, o machismo estrutural não dá espaço para elas. Machismo refletido no ditado popular: “Por trás de todo grande homem, existe uma grande mulher”. Ora, por que não dizer que “à frente de todo homem, existe uma grande mulher”? E tudo isso me faz lembrar da minha avó Neusa Goulart Brizola (1922-1993), cujo protagonismo (quase invisível) da mulher nascida em família de ricos estancieiros gaúchos que se afastou das origens para viver a sua história entre duas importantes lideranças políticas nacionais: o marido, Leonel Brizola, e o irmão, João Goulart.
Moderna para o seu tempo, Neusa era namoradeira e só se casou aos 28 anos, idade avançada para uma época em que as moças eram “do lar” e casavam-se bem mais novas. Preferiu estudar, concluiu o curso normal, dirigia o próprio carro e acompanhava Jango nas festas e na política como militante. Foi em uma reunião do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que ela conheceu o meu avô, Leonel.
Ele, estudante de engenharia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), exercia o primeiro mandato de deputado estadual. Descobriu que ela era irmã de Jango, o colega de bancada. Iniciaram o namoro e casaram-se em 1950, tendo Getúlio Vargas como um dos padrinhos.
Como primeira-dama do RS, Neusa foi ativa. Dirigiu a Legião Brasileira de Assistência (LBA), liderou as mulheres para as obras sociais, criou um serviço de bolsas de estudos e doou 45% das terras herdadas dos pais para a reforma agrária promovida pelo marido governador.
Neusa nunca fugiu do embate, mesmo nascida na elite, em ambiente masculino e machista. Um fato que diz muito sobre a minha avó, aconteceu durante a Campanha da Legalidade, em 1961, quando Brizola, então governador, reagiu contra os militares que visavam impedir a posse do cunhado, o vice-presidente Goulart, depois da renúncia de Jânio Quadros.
Naquele momento dramático, após a ameaça de bombardeio ao Palácio Piratini, ela entregou os três filhos, de 8, 6 e 4 anos, aos cuidados de uma amiga e correu todos os riscos ao lado de Brizola. Católica, no desenrolar daquela tragédia anunciada, acuada na ala residencial e cercada por soldados e barricadas, rezava, mas sem jamais dispensar o revólver na bolsa.
Com a ditadura militar implantada no Brasil em 1964, Brizola passou a ser perseguido e teve que se esconder. Neusa vendeu as propriedades e foi para o exílio no Uruguai com os filhos. Depois de um tempo, ele se uniu à família. Embora acostumada com o luxo da casa dos pais, ela cozinhava sopões para os que batiam à porta em busca de ajuda e de notícias do Brasil.
A vida seguiu até surgirem novas reviravoltas. Com a expulsão de Brizola do Uruguai, em 1977, ela foi para a segunda etapa do exílio nos EUA e na Europa, totalizando 15 anos. Quando voltou ao Brasil, com a anistia, foi primeira-dama, no Rio de Janeiro até nos deixar.
Submetida a muitas provas, sempre corajosa e sem perder a serenidade. Neusa não foi uma coadjuvante, foi participante ativa. Mas, as mulheres não aparecem nos livros nem nos filmes, onde entramos mudas e saímos caladas, invisíveis e esquecidas — como as mulheres que hoje sofrem violência doméstica, confinadas na quarentena.