Discutindo a relação

» FLAVIO FLORES DA CUNHA BIERRENBACH Advogado e ministro aposentado do Superior Tribunal Militar, foi procurador do estado de São Paulo, vereador, deputado estadual e deputado federal por São Paulo.

Não importa o que possa acontecer na vida, qualquer indivíduo que venha se relacionar afetivamente, em algum momento da existência, será desafiado pela parceira para discutir a relação. É carma da vida privada; ninguém escapa, podem conferir.
Lamentavelmente, entretanto, na vida pública não se discute a relação. Os Três Poderes da União, que deveriam ser independentes e harmônicos entre si como está na Constituição, não são nem uma coisa nem outra. E não discutem a relação. Na democracia, o único leito conjugal (verbo conjugar), onde isso seria possível, é o parlamento.
O parlamento da nação, porém, é para lamentar. Os outros Poderes não são melhores. Sustento, publicamente, com conhecimento de causa, que no Brasil, entre os Três Poderes, o que presta o pior serviço ao povo é o Judiciário.
Paradoxalmente, é minha descrença no Judiciário que alimenta minha fé em Deus. Afinal de contas, alguma justiça há de ter.
Nestes últimos dias, surgiu notícia que não me deixa mentir. Foi julgada uma ação proposta pela princesa Isabel! Não me atrevo a comentar se a decisão teria sido certa ou errada. Decisão judicial não se discute; cumpre-se (Roma locuta, causa finita).
É pena, mas o Judiciário brasileiro, afogado em um oceano de litígios, cumpriria muito melhor o seu papel se o Congresso Nacional soubesse cumprir o seu. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, entretanto, acham-se preocupados com tão magnas questões, que escapam à percepção do cidadão comum, a quem deveriam servir.
O Brasil tem o maior aranzel de leis do planeta. Só a Carta de 1988, que deveria ser o estatuto da nação, entre artigos, alíneas, incisos, parágrafos — e uma centena de emendas — tem mais de 2 mil dispositivos, quase todos permitindo interpretações díspares e revelando espantosas divergências. A prestação jurisdicional é convertida em uma espécie de perversa loteria.
Assim, não é possível um Judiciário bom, nem sequer razoável. No entanto, a qualidade média dos membros do Judiciário em nosso país é incomparavelmente melhor se cotejada com integrantes dos outros Poderes, e estes — é bom notar — são eleitos pelo povo, como devem ser. Vejam bem: estou tratando da média, pois um magistrado, quando ruim, é mais nocivo do que qualquer legislador e do que a maioria dos governantes.
A inexistência de discussão institucional contrasta encabulada com a profusão de diálogos clandestinos, seja no escurinho de discretos restaurantes, seja nas salas VIPs dos aeroportos, onde Suas Excelências simulam encontros casuais. Fora as viagens sinistras. Até além-mar, togas e ternos camuflados às vezes misturam-se em contubérnios obscenos.
Toda essa introdução pessimista vem a propósito do que deve acontecer nos próximos meses, com a abertura de vaga no Supremo Tribunal Federal, correspondente à aposentadoria do ministro Celso de Mello. Não discuto o critério constitucional do preenchimento das vagas nos tribunais superiores, até porque estou de acordo e já passei por ele. Trata-se de ato jurídico complexo, bem arquitetado, pois envolve a participação dos Três Poderes.
O Executivo indica pessoa que cumpra os frugais requisitos previstos na Constituição. O Legislativo aprova ou reprova. Finalmente, o Judiciário investe ou não. Há precedentes. É no meio da linha que o sistema vem falhando, já que o Senado Federal, quando negligente na sabatina destinada a avaliar minuciosamente o nome submetido, torna-se mero órgão homologador de escolhas por vezes suspeitas.
O controle recíproco entre os Poderes, mediante a aplicação do sistema de freios e contrapesos, é condição sine qua non da efetividade democrática. A nação tem o direito de cobrar dos Três Poderes da União um nome que corresponda à responsabilidade de cada um e à importância do Supremo Tribunal Federal.