Retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro, esse é o conceito de Sankofa (sanko = voltar; fa = buscar), base de um provérbio africano. Como símbolo, pode ser representado por um pássaro mítico que voa para a frente tendo a cabeça voltada para trás, carregando um ovo no bico. O retorno ao passado se faz necessário e urgente no Brasil, com destaque para a escravidão compreendida entre os séculos 16 e 19, no intuito de entender este presente tão duro e cruel a que está submetida a população negra e remeter a um futuro carregado de esperança, embora incerto e utópico.
Percorrer a trajetória do povo negro, reconhecer as sequelas provocadas na diáspora, tais como o sequestro da humanidade, os castigos, a impossibilidade de culto aos orixás, o banzo e a morte, é promover o diálogo entre passado e presente, sob as asas do pássaro africano, a fim de buscar o encontro do indivíduo com o coletivo e possibilitar um futuro, sustentado por bases mais justas e equitativas.
O Brasil é o segundo país negro do mundo. Dos 12,5 milhões de escravizados, 4 milhões, aproximadamente, ficaram no país. Data de 1535 a chegada dos primeiros escravos. Só a cidade do Rio de Janeiro recebeu cerca de 2 milhões, destinados, principalmente, aos engenhos de açúcar. Sobre esse comércio transatlântico de seres humanos, difundiu-se a ideia de que se estava fazendo o bem aos escravos, resgatando suas almas para o reino de Deus.
Muitos navios negreiros ou tumbeiros recebiam nomes, tais como Feliz Destino, Feliz Dias a Pobrezinhos, Regeneradora... para reforçar tal máxima. Hoje, qualquer semelhança é mera coincidência quando o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, defende a extinção do movimento negro, desmente a existência do racismo no país e afirma que a escravidão foi benéfica para o negro.
Diante das atrocidades cometidas aos povos originários e escravizados em nome de supremacia branca e soberana, em nome do poder e dos privilégios, ainda assim, as lutas e os movimentos por liberdade foram constantes, têm-se os quilombos como prova. Já libertos, a privação imposta aos negros não foi apenas do acesso à escola, mas, também, ao trabalho, justificada pelo etnocentrismo e pela perspectiva científica racista de então. Para isso, os dispositivos legais foram fundamentais para manter a exclusão.
A Constituição de 1824, no rol de direitos e prerrogativas, versa que a escola é direito de todos os cidadãos, exceto para os escravos. Aos portugueses, seus descendentes e libertos, era estendida a cidadania, porém, os estudos para os ex-escravizados, “livres” eram garantidos só mediante rendimentos, cerca de 800 mil réis, e posses. Como se teria tal quantia?
A estrutura vigente também corrobora para invisibilidade e permanente exclusão da população negra que, segundo dados do IBGE, é 56,10% da população (somando pretos e pardos). No cenário educacional, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019 (Pnad Contínua) revelam que a necessidade de trabalhar é um dos principais motivos que levam jovens a abandonarem os estudos. Dez milhões de jovens, entre 14 e 29 anos de idade, não completaram a educação básica, sendo 71,1% pretos e pardos.
A abolição da escravatura não garantiu de fato a liberdade. Castigos corporais e outras humilhações se fazem presentes quando um jovem negro é executado sumariamente, quando o imaginário coletivo define o negro como perigoso e incapaz, quando a cor da pele é uma sentença: 75% das vítimas letais são negras (dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Se, antes, em cada praça, havia um pelourinho, hoje o Brasil abriga a quarta população prisional do mundo, 61,6% são indivíduos pretos e pardos (Infopen).
A viagem sugerida no início do texto, entre o ontem e o hoje, impõe-se diante do descaso, da barbárie, da dor. Questiona-se: como esse povo chegou até aqui? A narrativa negra sustenta-se na gira, na devoção às divindades ligadas à natureza, na força da herança ancestral, na dança e na defesa da capoeira, no canto e no som do atabaque que ecoa a cada luta. O silêncio fortalece a desigualdade racial, a institui e a estrutura. É preciso conhecer e combater qualquer medida que impeça o negro de sonhar, de respirar, de viver.
*Formada em letras, especialista no ensino de português como segunda língua para pessoas surdas, é professora da rede pública do DF