Nenhum país pode prosperar sem o conhecimento científico e sem democracia. Entre 2005 e 2015, significativo investimento do governo federal nas universidades gerou aumento que quase triplicou o número de estabelecimentos, ampliando a cobertura da educação superior pública para extensa área do território nacional a partir de vigoroso processo de interiorização dos campi universitários.
No entanto, do ponto de vista do noticiário, as universidades federais continuaram sendo tema de muitas manchetes negativas que, ao destacar pontuais (às vezes, supostos) abusos da liberdade, associados a festas, drogas, violência, e relegar a segundo plano a revolução de inclusão e democratização no acesso à educação superior que se passava, contribuiu para um processo que já vinha de longa data pondo em dúvida a real importância dessas instituições.
Tanto é verdade que o senso comum do ex-ministro Weintraub — que insistiu em associar as universidades federais à balbúrdia, a custo excessivo, à falaciosa improdutividade e inexpressividade no cenário internacional — ecoou em parte da sociedade.
A solução dessa distorção não passava apenas pela necessidade de a sociedade “compreender a importância” das universidades públicas, mas, também, de elas saírem da posição de isolamento e ocuparem espaço de centralidade no cotidiano da sociedade. Ao que parece, os dois movimentos finalmente estão ocorrendo.
As campanhas midiáticas de divulgação das universidades públicas diante dos ataques difamatórios, cortes orçamentários e a proposta privatista do Future-se surtiram efeito na sensibilização da sociedade para sua real importância. Em 2020, a pandemia do novo coronavírus recolocou as recomendações e explicações científicas em destaque na mídia e, nesse contexto, a atuação das universidades foi e está sendo exemplar, como referências locais e regionais de informação confiável e ações relevantes no combate à doença e suas consequências sociais e econômicas.
O que ainda não foi devidamente explorado e compreendido é o papel fundamental das universidades públicas na defesa da democracia. Para além da formação acadêmica de qualidade, a produção de conhecimento científico e a ação social desempenhada pela extensão universitária, a defesa intransigente dos valores democráticos é a essência da universidade pública. A comunidade universitária sempre se insurge diante de atitudes antidemocráticas, tanto nos contextos internos quanto nos externos.
É que a democracia está enraizada na sua estrutura e na sua essência. Além dos debates cotidianos e assembleias de diversos tipos e temas, a organização universitária é feita em torno de órgãos colegiados cujos membros, assim como os dirigentes, têm mandato e são escolhidos por meio do voto da comunidade acadêmica. Assim são eleitas chefias de departamento, diretorias de institutos, faculdades, campi e, sobretudo, reitores.
Para quem não compreende a importância desses processos, cabe perguntar: como falar com propriedade de cidadania e democracia para a juventude sem vivenciá-las? Os processos políticos nas universidades são as principais maneiras de exercer a participação nas decisões da instituição e preparar as pessoas para que façam o mesmo nos contextos municipais, estaduais e nacional. Como tantos já disseram, democracia só se aprende fazendo.
O que dizer, então, de vivenciar o processo democrático, incluindo elaboração de planos de gestão, candidaturas, campanhas, debates, eleições em dois turnos para, ao final, a escolha não ser respeitada e alguém rejeitado no processo eleitoral ser empossado reitor? Pois é essa a aberração da lista tríplice na nomeação de reitores em universidades públicas.
A Lei nº 9.192/95, que rege o processo de escolha e nomeação dos dirigentes das universidades e institutos federais, mesmo promulgada após a ditadura militar, conservou uma lógica que serve apenas para manter as aparências de processo democrático, mas que, na verdade, o coloca na dependência dos humores da Presidência da República. E, incrivelmente, nenhum governo democrático que se seguiu ousou modificar a lei, de modo que, ainda hoje, o processo de consulta para nova reitoria em qualquer universidade pública vem acompanhado do fantasma da nomeação com a pergunta recorrente: será que o governo respeitará a escolha da comunidade universitária?
Se, para algumas autarquias, a lista tríplice é vista como opção melhor do que a nomeação direta pela Presidência da República, para a universidade é distorção da democracia e a anulação da mais básica manifestação de sua autonomia, prevista na Constituição Federal. Afinal, no contexto de uma instituição que tem entre as missões formar para a cidadania, que ensinamento estaria professando ao concordar com essa incoerência?
Uma observação de todo o processo permite dizer que a não nomeação do escolhido pela comunidade, longe de configurar demonstração de força do governo, tende a ser vista como um ato de profundo desrespeito à democracia e à autonomia universitária. A nomeação de reitor não escolhido pela comunidade tem levado, e sempre levará, a estado de desordem nas universidades, de frustração e sentimento de ataque aos processos democráticos, plenamente justificáveis dada a distorção da situação que deveria ser a celebração e o fortalecimento da democracia.
Após as recentes intervenções na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) e no Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), a governadora Fátima Bezerra anunciou que proporá à Câmara Estadual projeto de lei extinguindo a lista tríplice para a reitoria da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), tornando obrigatória a nomeação do escolhido pela comunidade.
Nada mais coerente com a defesa da democracia, da Constituição e da autonomia universitária. Que essa atitude desperte em outros governadores a tomada de medida similar para as universidades estaduais e encoraje a Câmara dos Deputados a extirpar a distorção do cotidiano das universidades federais. A democracia agradecerá.