ÁRBITRO DE VÍDEO

Do juiz larápio ao VAR

''O profissionalismo tentou tornar inexequível o juiz larápio. Nelson Rodrigues até reclamou disso em outra crônica, O juiz ladrão, em 31 de dezembro de 1955, na Manchete Esportiva''

Em tempos de VAR, dirijo-me até a minha biblioteca, miro no autor Nelson Rodrigues e retiro da prateleira dois clássicos da literatura esportiva brasileira. Primeiro, vou até a página 13 do livro A pátria em chuteiras e releio a crônica Um gol cravado no peito inimigo. O texto foi publicado, originalmente, em 21 de abril de 1956, na extinta revista Manchete Esportiva.

Ao falar sobre os amistosos do Brasil contra Suíça e Áustria, Nelson Rodrigues escreve algo que, certamente, repetiria hoje: “Sempre digo, nas minhas crônicas, que a arbitragem normal e honesta confere às partidas um tédio profundo, uma mediocridade irremediável. Só o juiz gatuno, o juiz larápio dá ao futebol uma dimensão nova e, se me permitem, shakespeariana. O espetáculo deixa de se resolver em termos chatamente técnicos, táticos e esportivos. Passa a ter uma grandeza específica e terrível. Eis a verdade: — o juiz ladrão revolve, no time prejudicado e respectiva torcida, esse fundo de crueldade, de insânia, de ódio que existe, adormecido, no mais íntegro dos seres. O mínimo que nos ocorre é beber-lhe o sangue”.

Nelson Rodrigues defende todo o poder ao árbitro. Odiaria a vida como ela é, hoje, no futebol. Em tese, ficou mais confortável para os apitadores depois da implementação do VAR e, até mesmo, da ausência dos torcedores nos estádios causada pela pandemia do novo coronavírus. A revolução tecnológica e o silêncio da arquibancada deveriam ter extinto o “juiz ladrão”. Só que não. Ele agora atende pelo pomposo nome de VAR: do inglês, Video Assistant Referee.

Árbitros de Vídeo são temas predominantes nas mesas redondas. Sou favorável ao uso do VAR. O uso da tecnologia dá certo em vários esportes. Vingou em ligas de futebol organizadas, com treinamento à exaustão para profissionais maduros, prontos para lidar sob pressão com as ferramentas. No Brasil, virou esculhambação. Algo precisa ser corrigido pela CBF. Imprensa, treinadores, jogadores e torcedores também precisam se reeducar. Falta maturidade cultural generalizada para lidar com as tomadas de decisão. Basta observar as redes sociais durante os jogos. Chega a ser, no mínimo, irresponsável, acusar o VAR de ajudar esse ou aquele time.

Como quase tudo em tempos tão estranhos, o VAR virou ame-o ou deixe-o, vida ou morte, sim ou não. Quem aprova é Nutella. A turma do contra, raiz. Ai de quem tente achar meio termo. VAR, como diz a sigla, é assistente. Acessório. No Brasil, virou controle remoto. Ponto eletrônico para teleguiar, manipular, confundir e até tirar o poder humano do juiz. Os operadores estão treinados? Sacam de geometria, edição para traçar linhas? O aplicativo é bom? Suficiente?

O profissionalismo tentou tornar inexequível o juiz larápio. Nelson Rodrigues até reclamou disso em outra crônica, O juiz ladrão, em 31 de dezembro de 1955, na Manchete Esportiva. “Seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos”. O texto faz 65 anos! Era polêmica no século passado. Continua. Agora, reinventada como VAR.