Campos da maioria minorizada: territórios negros

RICHARD SANTOS
postado em 26/09/2020 09:34
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

Noutro dia me perguntaram por que escrevo e insisto em escrever sobre a comunidade negra brasileira. Acreditem, o “insistir” existiu. O questionamento demostra a forma de olhar o trabalho intelectual do sujeito negro. Essa articulação denota a subjetiva percepção de que são registros “desnecessários”.

Respondi que insisto em retratar e compreender a inserção social da comunidade negra em meus escritos, da mesma forma que historicamente os não negros insistiram em registrar a nossa existência subalternizada, reforçar o nosso não lugar na construção nacional deste maravilhoso país e nos articular como objetos de laboratórios sociais.

Não é assim que se articula a formação das ciências sociais no Brasil? Questionei. Arrematei que falar do negro é visibilizar a nossa formação nacional em sua plenitude, pois nós somos a maioria minorizada.

É com essa perspectiva de registro sócio-histórico que escrevi Maioria minorizada — um dispositivo analítico de racialidade, minha mais recente obra em que “insisto” em seguir analisando a formação nacional e a brasilidade das formas de inclusões, subalternizações, cidadanias mutiladas e narrativas que denotam o não ser, um não lugar.

O livro tem a finalidade de introduzir ao público o dispositivo analítico de racialidade que denominei maioria minorizada. Um construto que delineei como signo de representação unificador do discurso e proposta de emancipação negra.

Compreendo como maioria minorizada o grupo social majoritariamente formado por pretos e pardos (negros) conforme categorização do IBGE que, embora conformem a maioria demográfica brasileira, constitui -se minoria em termos de acesso a direitos, serviços públicos, representação política.

Pessoas negras que, racializadas como seres inferiores, sofrem apagamento identitário, são desidentificadas, tornando-se, portanto, minorias no acesso à cidadania, e maiorias em todo o processo de espoliação econômica, social e cultural. Por fim, as maiores vítimas de todas as formas de violência.

No contexto literário e comunicacional, Maioria minorizada é uma obra aberta, a completar-se, representa o desejo de incidir positiva e propositivamente sobre a imagem da comunidade negra. O desejo da emergência de uma imagem discursiva e reconfigurada que desorganize subjetivamente e desconstrua efetivamente o imaginário racista de terror sobre os sujeitos negros no mundo branco. Que ponha abaixo as identidades pré-fabricadas sobre o mundo negro e reproduzidas por muitos sem crítica ou percepção da reafirmação de dominância racial a que estão inseridas.

A obra conta com a orelha escrita por Leci Brandão, prefácio de Maria do Carmo Rebouças dos Santos e pode ser vista como uma proposta teórica que vai na contramão do individualismo crescente nesta era neoliberal. O construto permite a relação com uma série de signos culturais existentes, mas de maneira que se configure um elemento novo.

Assim, o dispositivo analítico é um sintagma que possibilita a constituição de toda a significação paradigmática que dá valor ao cunho como maioria minorizada. Expresso a constituição de uma imagem sobre o dispositivo, pois este é fruto das interações sociais, da elaboração psíquica como um todo, dos resíduos memoriais da vivência, pesquisa social e consumo audiovisual. O dispositivo é resultado da relação recíproca entre consciente e inconsciente, acionados nas experimentações vividas.

Ressalto que, além de um lançamento por si, o livro inaugura a coleção Pensamento Negro Contemporâneo, que tem o objetivo de dar visibilidade aos saberes e produções teóricas de pensadores negros na academia e fora dela. É um convite a uma artesania de valorização da pluralidade e da geopolítica de saberes descentrados, produzidos por intelectuais e negros da diáspora e africanos, em conexão com os saberes da maioria minorizada de todo o Sul global.

Minha obra e trajetória são um compromisso intelectual de permanente justiça epistêmica articulado a um esforço de interpretação da realidade histórica e a produção intelectual daí advinda. Pesquiso, escrevo e estudo para romper, de uma vez por todas, com o complexo colonial, com o racismo e o epistemicídio.

*Doutor em ciências sociais pela UnB, é líder do Grupo de Pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo (UFSB-CNPq) e autor de Maioria minorizada: um dispositivo analítico de racialidade

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