A dignidade do trabalhador

» ALMIR PAZZIANOTTO PINTO Advogado
foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
postado em 09/09/2020 08:00 / atualizado em 09/09/2020 08:08
 (crédito:   )
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Para deixar de ser obstáculo à criação de empregos, a legislação trabalhista deve se conectar com a realidade. Foi o que aconteceu com o Código Civil sancionado em 1º de janeiro de 1916 para entrar em vigor em 1º de janeiro de 1917. A longevidade deveu-se à qualidade da codificação, para a qual contribuíram civilistas do porte de Nabuco de Araújo, Felício dos Santos, Coelho Rodrigues. O projeto passou por longa maturação, como relata Clóvis Bevilaqua nos Comentários, cuja primeira edição data de 1916. Apesar de magistral, a legislação envelheceu até ser substituída, aos 86 anos, pela Lei 10.406, de 2002.

Na Exposição de Motivos do projeto do atual Código Civil, submetido em 6 de junho de 1975 ao presidente Ernesto Geisel, o ministro da Justiça Armando Falcão escreveu: “É de longa data, Senhor Presidente, que vem sendo reclamada a atualização do Código Civil de 1916, elaborado numa época em que o Brasil mal amanhecia para o surto de desenvolvimento que hoje o caracteriza, e quando ainda prevaleciam, na tela do Direito, princípios individualistas que não mais se harmonizam com as necessidades e aspirações do mundo contemporâneo, não apenas no domínio das atividades empresariais, mas, também, no que se refere à organização da família, ao uso da propriedade ou ao direito das sucessões”.

A tarefa de consolidar numerosa legislação trabalhista esparsa foi entregue, em setembro de 1942, a pequeno grupo de procuradores do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Quatro meses depois, em 5 de janeiro de 1943, o Diário Oficial estampou o projeto definitivo. Em 1º de maio, nas comemorações do Dia do Trabalho, Getúlio Vargas, chefe do Estado Novo, baixou o Decreto-Lei nº 5.452, aprovando a Consolidação das Leis do Trabalho. Tendo como foco escassa força de trabalho industrial urbana, a CLT foi imposta ao país cuja população, de 45 milhões de habitantes, era constituída majoritariamente por trabalhadores rurais utilizados no cultivo de café, algodão, milho, cana-de-açúcar, pastoreio de gado.

Parafraseando Oliveira Vianna, a CLT foi construída no vácuo. A imaginação dos procuradores, cujas experiências se limitavam ao Rio de Janeiro das décadas de 1930/1940, espraiou-se por todos os recantos do direito material e do direito processual do trabalho. A falta de conhecimento prático foi suprida pela consulta à doutrina alienígena. Deu-se ênfase ao contrato individual, disciplinado de forma minuciosa e alicerçado sobre o discutível princípio da hipossuficiência generalizada. Entregou-se ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio o controle da vida sindical.

Empregadores e empregados foram divididos discricionariamente em categorias econômicas e profissionais, grupos e subgrupos, segundo o figurino corporativo fascista de Benito Mussolini. Às entidades reconhecidas pelo Estado concedeu-se o monopólio de representação na base territorial. O direito à livre negociação de contratos coletivos foi estrangulado com a criminalização da greve. Conflitos de natureza econômica passaram a ser resolvidos pela Justiça do Trabalho.

Enquanto o Brasil se manteve fechado ao comércio exterior, a Consolidação funcionou. Jamais, porém, teve forças para absorver a maioria dos empregados e eliminar o mercado informal. A decadência da CLT tornou-se patente a partir do momento em que a abertura do mercado revelou a baixa capacidade competitiva do produto nacional. Incapacitado de disputar com alemães, chineses, japoneses, coreanos, em inovação, qualidade e preço, a indústria encolheu e aumentou o desemprego.

Com a informatização, antigas profissões desapareceram e novas formas de trabalho surgiram. Além de acelerar a produtividade, o microcomputador passou a integrar os utensílios domésticos e escolares. Do tempo do fogão a lenha, da locomotiva a carvão, do telégrafo Morse, a CLT foi ultrapassada por ferramentas eletrônicas de alta velocidade. Convivemos com o teletrabalho, o trabalho compartilhado, a videoconferência, o robô, o drone, a Uber, o Google, o Linkedin, a internet, as fintechs.

Trocamos as turbulências do século 20 por insondáveis desafios do século 21. O mundo exige revolução ética. É fundamental devolver ao trabalhador a dignidade corroída pelo desemprego. Dignidade que lhe não oferece a malha legal de proteção, anulada por falta de trabalho. Para o homem de caráter, nada pior do que se sentir desconsiderado, desprezado e inútil.

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