Eu gostaria de dizer que o Brasil, enfim, despertou-se para a barbárie que ocorre diariamente com crianças e adolescentes, a partir da atrocidade cometida contra a menina de 10 anos, no Espírito Santo. Mas não foi o que me pareceu. O suplício dela causou repercussão nacional, principalmente, por causa da questão de interromper ou não a gravidez. O país se dividiu sobre o assunto, entidades e especialistas manifestaram-se, famosos e anônimos desfiaram opiniões. Foi uma mobilização impressionante. Agora, eu pergunto: por que não nos unimos assim pela segurança de meninos e meninas, tão negligenciados neste país? Por que só nos movemos quando a perversidade já foi sacramentada, como é o caso com essa inocente, estuprada durante anos pelo tio? Alguém realmente acreditava que esse tipo de monstruosidade era um caso isolado?
Para nossa vergonha, o horror se repete com frequência no Brasil. A plataforma DataSUS — do Ministério da Saúde — aponta que, entre janeiro e junho deste ano, 35 abortos foram feitos em meninas de até 14 anos. O total chega a 791 nesse período, se forem considerados os abortos ocorridos espontaneamente ou em outras situações. No ano passado, foram feitas 72 interrupções de gravidez em vítimas nessa faixa etária. Somadas às espontâneas e outros tipos, chegaram a 1.871 em 12 meses. E isso sem contar as crianças e adolescentes que deram à luz.
Abusos sexuais de meninas e meninos é um flagelo no Brasil. Estatísticas do Disque 100 — canal de denúncias do governo — mostram que uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual a cada 15 minutos no país. Outro levantamento, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, aponta que, a cada hora, quatro garotas de até 13 anos são estupradas em nosso território. Em geral, os algozes são parentes ou amigos da família.
Se esses números já são aterradores, ainda nem refletem a realidade, pois há subnotificação. Mas o Brasil segue negligenciando os mais vulneráveis da sua população. Colunista da Rádio CBN, a juíza Andréa Pachá fez uma abordagem que faço questão de resumir aqui: “O mais assustador não é que esse caso tenha vindo à tona, é o nosso silêncio diante de tanta violência. Imaginar que nós convivemos com essa barbaridade, como se nada tivesse acontecendo, porque é invisível, suscita um sentimento de impotência e de omissão”, afirmou. “Imaginar que uma criança passe quatro anos sendo violentada sem que isso chegue ao conhecimento de ninguém, sem que a família tenha a percepção do que está acontecendo, sem que a escola saiba o que está acontecendo e denuncie, significa que essa falhas têm sido sistemáticas.”
A mesma mobilização vista entre os pró e contra o aborto no caso capixaba tem de se repetir para cobrar ações efetivas e permanentes do Estado em prol da segurança de meninos e meninas, exigir do Congresso leis mais rigorosas para crimes cometidos contra eles. E cada um de nós tem de se engajar na luta, seja pressionando os gestores públicos, seja denunciando violações. Todos somos responsáveis por mudar essa devastadora realidade.