Choque talvez seja a palavra adequada para nomear a reação à tragédia que veio a público há poucos dias. Menina de 10 anos sofria abusos sexuais desde os 6 anos. O caso só foi descoberto porque ela, com fortes dores abdominais, precisou ir ao médico. Exames revelaram a gravidez de 22 semanas. Mais: o autor da violência foi o próprio tio.
A sucessão de horrores não parou aí. Médicos do Espírito Santo, estado onde a vítima mora, julgaram-se incapazes de interromper a gestação. Ela teve de ir a Recife para realizar o procedimento. Lá, um bando de manifestantes antiaborto tentou impedir o processo, apesar da autorização judicial e do risco que a garota corria.
Casos como o da criança capixaba não constituem fenômeno raro. A barbárie repete-se de Norte a Sul do Brasil. Dados do Ministério da Saúde informam que, dos 1.024 abortos legais efetivados no primeiro semestre deste ano, 35 foram de meninas com até 14 anos de idade. Em 2019, somaram-se 72 — um a cada cinco dias.
Os números devem ser maiores se for levada em conta a subnotificação. Medo, ignorância, álcool, droga, indiferença, aceitação tácita são fatores que contribuem para a barbárie. Também conta o histórico da família. Não raro pai, mãe ou ambos sofreram abusos na infância e, assim, adultos, sentem-se frágeis para defender os filhos.
Especialistas afirmam que não basta pôr o agressor atrás das grades. A punição é importante, mas não suficiente. Há que montar uma cadeia de proteção para prevenir ocorrências. Governo e sociedade precisam dar as mãos. A escola em geral é o primeiro elo a tomar conhecimento dos abusos porque as crianças contam ou se comportam de tal forma que levantam suspeitas.
Mas, sozinha, pouco pode fazer. Professores devem ser treinados para adotar um protocolo: contatar a família, os conselhos titulares, o juizado de menores. As instituições de ensino fundamental e médio podem buscar recursos nas universidades, que contam com corpo técnico capaz de orientar os caminhos a seguir.
A educação sexual — sem ranço religioso — precisa ser encarada com seriedade. No Brasil, o quadro da gravidez na infância e na adolescência é dramático. Em 2018, 21.172 bebês nasceram de mães entre 10 e 14 anos e 434.956 de mães entre 15 e 19 anos. Além do risco à saúde, a mãe precoce abandona os estudos e contribui para a perpetuação da pobreza. É o jogo do perde-perde. Perde-se a infância e perde-se o futuro.