Estudo recente do Instituto Millenium recebeu enorme divulgação na imprensa e na TV. O Millenium é think tank "liberal" que tem Paulo Guedes entre os fundadores. O Millenium lançou a campanha "Destrava", cujo objetivo é "pressionar pela aprovação da reforma administrativa".
O estudo afirma que o governo "gasta com servidores públicos 3,5 vezes mais do que com a saúde e o dobro com educação". Tal comparação parece pressupor que seja possível gastar com saúde e educação sem pagar salários a médicos e professores. O Millenium parece ignorar que os ministérios da Educação e da Saúde somam mais de 75% do funcionalismo civil da União.
O estudo também produziu estatística surpreendente: o Brasil gastaria 13,7% do PIB com pessoal nas três esferas da Federação. A estimativa é muito superior à do Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea, que foi de 10,7% . O Ipea é órgão federal que também defende a reforma administrativa. O Millenium parece ser mais realista do que o rei.
Os objetivos da reforma administrativa são arrochar salários e tirar a estabilidade do funcionalismo. A estabilidade é tratada por conservadores como privilégio corporativo. Na verdade, os constituintes botaram a estabilidade na Carta Magna para proteger o funcionário de pressões política espúrias.
Sem a estabilidade, não haveria freios para a corrupção, moléstia endêmica da classe política. O ministro Ricardo Salles, por exemplo, poderia demitir funcionários da Funai e botar no lugar mineradores. Os policiais federais poderiam ser substituídos por milicianos. E os professores das universidades federais cederiam os cargos para os terraplanistas do Olavo de Carvalho.
Ao fazer lobby pela reforma administrativa, o Millenium desviou-se de rota ao misturar gastos da União com os dos estados e municípios. O correto teria sido focalizar o funcionário federal, "inimigo" em cujo bolso Paulo Guedes "bota granada". A comparação internacional teria sido muito mais fácil.
O Banco Mundial reúne informações fiscais federais de mais de 200 países. E ele mostra em seu WDI que, em 2018, o governo federal do Brasil gastou com o funcionalismo 12% da despesa total. A média mundial naquele ano foi 22%. A média da América Latina e Caribe foi 29%.
Ainda segundo o WDI, o Brasil gastou com juros em 2018 24% da despesa, quando a média mundial foi 6%. Ou seja, o governo gasta com juros 400% da média mundial. O descontrole de gastos da União não está no funcionalismo público, mas na agiotagem permitida pelo Banco Central em desfavor da viúva.
A campanha de demonização do funcionalismo público federal é componente da política neoliberal dogmática que se instalou no Brasil após as eleições de 2014, quando Dilma Rousseff entregou o comando da economia ao Chicago boy Joaquim Levy. De lá para cá, tivemos 5 anos e 9 meses de uma estranha "Austeridade" que, não obstante cortar direitos trabalhistas e benefícios sociais, produz endividamento público galopante.
Se a "Austeridade" de Levy era branda, ela foi radicalizada a partir do governo Michel Temer, que implantou o controvertido teto dos gastos. Temer botou na Constituição um mecanismo de arrocho fiscal de rigor inédito na história mundial. O teto exige que as despesas não financeiras da União sejam ajustadas pelo IPCA, sem considerar o crescimento da população e da renda.
Não é difícil perceber o rigor draconiano da medida. Entre 1996 e 2015, os 20 anos anteriores ao teto, o PIB nominal do Brasil aumentou 749%. Se o teto tivesse sido aplicado durante tal período, as despesas primárias teriam sido reajustadas em apenas 261,1%. E, na verdade, o reajuste pelo IPCA teria reposto 67% da inflação do período, já que a variação acumulada do IGPM no período foi de 388%.
A Constituição, como existe hoje, não é compatível com o teto. Pois a Carta Magna prevê redes de proteção social que seriam desmontadas pelo torniquete fiscal que botaram na Constituição. A reforma da Previdência é insuficiente para garantir o cumprimento do teto. Faz-se necessário também encolher a Educação, a Saúde e desmontar o funcionalismo público. É no contexto da defesa dogmática do teto que o lobby do Instituto Millenium "e a reforma administrativa de Paulo Guedes" devem ser entendidos.