Nos primeiros dias de 2020, o mundo passou a acompanhar com certo ceticismo as notícias sobre a nova doença que se espalhava pelo território chinês. Apesar de das advertências sobre os riscos de uma pandemia, a situação assemelhava-se a outras já vividas, a exemplo do que havia ocorrido no continente africano envolvendo o ebola.
A partir do surgimento dos primeiros pacientes com a covid-19 além dos limites de Wuhan, a humanidade se viu em meio a um roteiro paralisante. Os brasileiros, por sua vez, retardaram um pouco mais. Como de costume, na terra do futebol, as alas da realidade só se abrem depois do carnaval.
Por mais que os olhos pudessem se manter fechados, não era mais viável fazer de conta que nada grave estava acontecendo. Que um mortal parasita intracelular já havia cruzado o Atlântico, isso era fato consumado. Não havia dúvida de que esta geração estava prestes a enfrentar tragédia equiparada à gripe do início do século 20. E foi assim que, apesar da preocupação quanto aos efeitos econômicos que as medidas de prevenção iriam causar, o governo acabou sucumbindo às pressões internas e externas no sentido de aderir às recomendações estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Alguns fatos ocorridos paralelamente à pandemia vêm despertando curiosidade nos campos sociológico, político e jurídico. Percebe-se que o novo coronavírus não se limitou a causar enfermidades caracterizadas pela infecção pulmonar. Fez aflorar, também, doenças que permaneciam latentes nos que apresentam resultado negativo nos testes. Muitos, embora mantivessem o corpo livre do vírus, foram incapazes de preservar a sanidade da mente diante do caos.
Embora exista número significativo de pessoas empenhadas em produzir a vacina, o que prepondera é uma gigantesca massa em busca de um bode expiatório para ser responsabilizado pela tragédia humana. É o modismo do binômio culpabilidade e punibilidade.
Encontrar alguém para acusar passou a ser necessidade vital de uma geração bastante doente, imune ou não ao vírus. Na cruz digital das redes sociais que não têm hora para ser erguida, diariamente se vê a face de novo cordeiro arrebatado. Nos tempos de pandemia, a culpa por todos os males está nos que saem de casa.
Nota-se que, na mesma proporção em que o vírus se alastra, a ignorância viraliza. Há quem ainda relute em compreender que nem todos possuem a estabilidade dos cargos públicos, ou desfrutam do privilégio de ocupar posição de destaque em grandes empresas que lhes garantam o salário. Tais segmentos representam parcela pequena da sociedade.
Por seu lado, autônomos e liberais que dependem da labuta diária para a subsistência sofrem verdadeiro linchamento em praça pública. Para esses indivíduos, os slogans que orientam o confinamento soam como sentença condenatória à pena capital.
A máxima jurídica sobre tratar os desiguais de forma desigual para fazer justiça parece esquecida. E o que mais causa espanto é que a inobservância tenha ocorrido em época de total dedicação dos meios de comunicação em incutir a ideia de que uma sociedade civilizada deve conviver harmonicamente com as diversidades.
E tantos que se lançam às ruas para cruzar o caminho do vírus, não há só alienados indiferentes a suposto enquadramento jurídico-penal das condutas. Nesse grupo, em sua maioria, estão os arrimos de família, que arriscam a vida em troca do sustento de seus entes queridos. Em menor grau, encontram-se os que sofrem de depressão e necessitam de outros ares como forma de resistir ao desejo de autodestruição. Apenas um exemplo entre tantos outros casos semelhantes...
O isolamento é remédio, mas, quando ministrado aos contraindicados, pode causar a morte. E, se o desejo de salvar vidas no período de surto da doença for para submeter os sobreviventes ao flagelo em momento posterior por meio de cortes de luz e gás, cumulados com ações judiciais de despejo, execução fiscal, além de demandas criminais envolvendo os delitos de sonegação, então a aparente compaixão se revelará sadismo.
Cada indivíduo pode carregar consigo argumentos justos e toleráveis para enfrentar um problema universal dentro dos limites de suas particularidades. Apenas para o vírus, as diferenças entre os seres humanos, nos quais se hospeda, não têm nenhuma relevância.