Visão do Correio: Responsabilidades sem jeitinhos

''Para fazer frente às urgências sanitárias, o Congresso reconheceu o estado de calamidade e deu sinal verde para ações extraordinárias sem preocupação com a responsabilidade fiscal prevista na Carta Magna. Em consequência, o deficit primário disparou e a dívida pública deu salto''

Há conquistas que constituem marco. São fruto de avanços trilhados, muitas vezes, com sacrifício de gerações. No Brasil recente, a vitória contra a inflação serve de exemplo. O controle da moeda permitiu a organização das finanças tanto públicas quanto privadas e possibilitou o planejamento de médio e longo prazo.


Outro feito, só possível graças ao primeiro, é a imposição do teto de gastos. Aprovado no governo Temer como dispositivo constitucional, o limite na despesa do governo foi passo decisivo rumo à racionalidade necessária para dar segurança aos investidores domésticos e internacionais. O texto estipula que os gastos da União não podem crescer acima da inflação do ano anterior.


Em 2020, o enfrentamento da pandemia exigiu medidas excepcionais. Para fazer frente às urgências sanitárias, o Congresso reconheceu o estado de calamidade e deu sinal verde para ações extraordinárias sem preocupação com a responsabilidade fiscal prevista na Carta Magna. Em consequência, o deficit primário disparou e a dívida pública deu salto.


Devolver a economia aos trilhos exigirá foco, unidade e determinação. Tarefa hercúlea, não permite titubeios. Daí porque causa apreensão o jeitinho ensaiado por membros do primeiro escalão do governo para furar o teto. O caminho tortuoso é consultar o Tribunal de Contas da União sobre a possibilidade de utilizar créditos extraordinários sem observância do limite.


Integrantes do Congresso Nacional engrossam o coro. De olho nas próximas eleições, sem compromisso com as próximas gerações, deputados e senadores mobilizam-se para afrouxar as regras ou prolongar o estado de calamidade. Tanto a emenda quanto o soneto acendem a luz vermelha. Geram desconfiança, que poderá se agravar com a debandada de sete profissionais da econômica.


Para acalmar os ânimos, o presidente Jair Bolsonaro reafirmou, ontem, a responsabilidade com a saúde fiscal. Um dia antes, Rodrigo Maia, presidente da Câmara, deu o mesmo recado. Lembrou que o país precisa de investimentos externos, cuja atração o controle dos gastos é o primeiro mandamento. “Pular a cerca”, como disse o ministro Paulo Guedes, “leva o país à zona de incertezas”.


Roberto Campos costumava repetir que o Brasil não perde oportunidade de perder oportunidades. A nação espera que o dito não faça eco na passagem de 2020 para 2021. Mágicas não existem. O caminho para reestruturar o Estado é longo e árduo. Mas precisa ser trilhado.