A escravidão era aceita tão naturalmente, que nem os escravos lutavam pela abolição; alguns reagiam, mas sem imaginar um mundo em que brancos e negros tivessem os mesmos direitos, fugiam do inferno em que viviam, mas sem imaginar o paraíso da liberdade. Por isso, historiadores dizem que havia escravos até nos quilombos. Intelectuais, políticos, padres, empresários, trabalhadores viam a escravidão dos negros com a mesma naturalidade como hoje vemos a desigualdade na qualidade da educação, conforme a renda e o endereço da criança.
Demorou para surgirem reações contra maus-tratos que sofriam os escravos, tais como a proibição do tráfico, o ventre livre, a liberdade dos sexagenários, mas sem tocar na estrutura escravocrata. Da mesma maneira, nas últimas décadas, implantamos medidas favoráveis à educação pública, mas sem a meta de assegurar que o filho do pobre tenha acesso à mesma escola do filho do rico.
A defesa da abolição, inspirada no exterior e sob a desconfiança geral da sociedade, só surgiu depois de três séculos de escravidão: por ser vista como utopia impossível, desnecessária, contra a natureza das coisas e ameaçadora do estabelecimento social. Os humanistas que eram contra os maus-tratos não conseguiam ver a possibilidade, nem a razão, para o fim do sistema arraigado sob visão hegemônica de que a desigualdade entre raças era natural, como hoje é aceita a desigualdade educacional por renda. Até o final da luta, a bandeira da abolição foi carregada por poucos.
A trincheira contra ela tentou adiar a data e indenizar os donos, mas perdeu. Mesmo assim, quando ela chegou, os não escravos se recusaram a dar os mesmos direitos aos ex-escravos e filhos, negando-lhes terra e escola. Continua resistindo na última trincheira da escravidão: a escola como privilégio para poucos, ricos, na maior parte brancos.
A luta pela igualdade na qualidade da educação tem o mesmo lento ritmo. As pessoas começam a ter sentimentos de vergonha pelo atraso educacional no país, a perceber que a evolução tecnológica está exigindo conhecimento, mas sem aceitar a ideia de que a escola deve ser a mesma para ricos ou pobres.
Quase 100 anos depois da abolição, criamos um sistema de escolas públicas municipais, programas para merenda e livro didático, Emenda Calmon; determinamos obrigatoriedade de matrícula dos 6 aos 14 anos, depois, dos 4 aos 17; implantamos Fundef, Fundeb, PNE-I, PNE-II, Piso Nacional Salarial, mas não nos atrevemos a uma estratégia educacionista.
Nenhum partido, nenhum governo, de direita ou de esquerda, defendem e se comprometem com uma estratégia com duas metas: o Brasil ter educação com a qualidade das melhores do mundo, e toda criança ter acesso igual a essa educação, independentemente da renda ou do endereço da família. Eleitores e eleitos não acreditam, ou não querem, tanto quanto na escravidão, quando muitos não queriam a abolição e outros não acreditavam que ela fosse possível.
A igualdade escolar é o gesto que ficou faltando na abolição. A desigualdade na qualidade da escola é resquício da escravidão, a última trincheira. Mas a ideia educacionista não seduz a opinião pública. Nem mesmo o Movimento Negro tem essa bandeira para completar a abolição.
Ele se concentra na luta correta, mas insuficiente, para beneficiar os afrodescendentes que terminaram o ensino médio e querem entrar na universidade, mas sem lutar pela alfabetização dos pobres na idade certa, pela erradicação do analfabetismo, que ainda tortura 12 milhões de adultos e garantir a cota de 100% dos jovens brasileiros concluírem o ensino médio com qualidade, e qualidade igual. Comportamento parecido com o dos humanistas contra maus-tratos, mas sem aceitar a abolição.
A última trincheira da elite social e econômica é manter para os filhos o privilégio de uma escola com mais qualidade do que a escola dos filhos dos pobres. Por isso, é difícil um pacto social para uma estratégia que objetive colocar a educação brasileira entre as melhores do mundo, e que todas as escolas sejam concessão pública, abertas para todos os alunos.
Mesmo assim, seguindo o exemplo dos abolicionistas, não podemos deixar de lutar por essa bandeira, ainda sabendo que até mesmo os que se incomodam com o vergonhoso quadro de nossa educação vão continuar defendendo os paliativos que caracterizavam os humanistas-contra-os-maus-tratos. E não podemos ficar contra eles, mesmo sabendo a insuficiência.
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