Foi o ator Will Smith quem disse que o racismo não aumentou, apenas está sendo filmado e desperta indignação. Foi isso que aconteceu e foi mostrado nas cenas de supremacia social protagonizadas por um desembargador em uma praia na cidade de Santos. Aquele encontro filmado não pode ser classificado como supremacia branca porque o guarda estava coberto de farda, quepe e máscara, mas é um retrato da supremacia social que impera no Brasil desde sempre.
O desembargador fez o que há séculos fazem os ricos instruídos diante de quem lhes parece pobre e analfabeto. Mesmo depois da abolição da escravidão e da proclamação da República, o Brasil continua aceitando a supremacia social. As camadas privilegiadas se sentem portadoras de nobreza, que as põe em patamar que daria direito à superioridade social, quase sempre identificada, também, como supremacia racial em um país onde a riqueza é branca e a pobreza é negra.
Chamando o guarda de analfabeto e rasgando a notificação da infração, a fala e o gesto do desembargador simbolizam de forma explícita o sentimento de superioridade. O “doltor” (com “l”) Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira não perguntou se o guarda municipal era ou não instruído. Para o supremacista social, o inferior é analfabeto e pobre pela roupa, pela cara, pelo calçado que usa, pela função que exerce e pelo grau de instrução que parece ter. Tão óbvio que, no Brasil, se diz: “analfabeto de nascença” ou “de berço”.
A supremacia é por posição social: o outro em frente é inferior, por isso, é tratado como analfabeto e pobre e sua notificação pode ser rasgada; sem valor, porque ele não pode multar um superior. Da mesma forma que, no Império, um plebeu não teria direito de multar um nobre. A República brasileira não conseguiu abolir o sentimento de nobreza superior dos ricos, dos “doltores”, dos desembargadores.
O sacrifício de George Floyd e a cena em que ele foi asfixiado por um guarda branco incendiaram o mundo contra o racismo praticado por supremacistas brancos. Mas o Brasil ainda não despertou contra os supremacistas sociais, que impedem que se completem a República e a democracia. Em uma república democrática, as pessoas têm os mesmos direitos e deveres perante as leis e as relações sociais. Como na frase exemplar do ministro Marco Aurélio de Mello, “na rua, o guarda é a autoridade, não o desembargador”. Essa é a visão correta em uma república, mas não em uma sociedade com supremacistas sociais. Nessa situação, alguns se sentem com mais direitos do que os outros e podem rasgar documentos de que discordam e agredir quem consideram inferior.
Além da supremacia racial dos brancos e da supremacia social, a democracia precisa eliminar a supremacia de políticos que se consideram os únicos portadores da verdade. Com a mesma arrogância do desembargador, os supremacistas ideológicos rasgam argumentos dos opositores. Usam o mesmo slogan do “sabe com quem você está falando?” e chamam quem discorda de analfabeto político.
Ao longo de nossa história, temos uma minoria privilegiada que se considera supremacista racial, supremacista social ou supremacista ideológico. Todos têm em comum o desprezo à democracia. Seria bom para a democracia brasileira que o gesto do “doltor” Eduardo nos fizesse despertar contra a supremacia social dos ricos contra os pobres. Mas, também, da necessidade de completarmos a democracia, eliminando a supremacia ideológica que impede o diálogo político e faz com que certos grupos se sintam donos da verdade, menosprezando tanto os adversários quanto um policial branco a um homem negro nos Estados Unidos, um desembargador a um guarda municipal em Santos.
A democracia não pode tolerar a supremacia racial nem social, tampouco a arrogância da supremacia política que tende a provocar regimes autoritários, que, em nome da verdade, recusam alternância no poder por se julgarem os únicos donos do progresso e da justiça social. Tudo isso ocorre porque, há 130 anos de República, nos negamos a implantar no Brasil o berço da democracia republicana: a escola pública de qualidade igual para todos.
Enquanto nossas crianças tiverem acesso a escolas de qualidade desigual, conforme a renda da família, o Brasil continuará vítima de “doltores” desembargadores que se sentem supremacistas sociais apenas porque têm um diploma universitário e um diploma de doutor que não merecem.
*Professor emérito da UnB