Em tempos difíceis, é comum dizermos ou ouvirmos alguém dizer que vai dormir para esquecer o que está acontecendo. Mas, será que dormir nos faz esquecer as agruras da realidade? Certo é que sonhamos quando dormimos e muitas vezes sonhamos com pessoas, coisas e eventos do dia a dia. Assim, dormir não faz esquecer ou fugir da realidade. Ao contrário, possibilita revivê-la.
Nas civilizações ocidentais modernas, a maneira de viver e de agir das pessoas e de suas comunidades raramente se baseia no mundo onírico dos sonhos. Estabelecemos uma trincheira entre o mundo que experienciamos acordados e o mundo que emerge dentro de nós enquanto sonhamos. Para quase todos nós, apenas o mundo que observamos em vigília é verdadeiro, e só nossas experiências nesse estado podem definir as atitudes e as respostas que damos aos desafios que enfrentamos.
Essa visão não é compartilhada por todas as civilizações. Entre os povos tupis-guaranis, por exemplo, situações sonhadas podem determinar os caminhos a serem percorridos, as posições de novas aldeias e a organização da sociedade. Os conteúdos dos sonhos são integrados às narrativas sobre passado, presente e futuro e participam na elaboração da realidade do sonhador e dos pares.
Se, por um lado, a maneira como interpretamos os sonhos e os integramos à realidade varia de acordo com a sociedade em que vivemos, por outro, os processos cerebrais e mentais subjacentes aos eles parecem ser universais. Estudos realizados por pesquisadores do Instituto de Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte indicam que os sonhos são atividades mentais relacionadas aos desafios que enfrentamos durante o período de vigília e, quanto maior forem os desafios, mais elaborados serão os sonhos.
Portanto, sonhar é acessar as memórias das nossas vivências, combinando-as de maneira não linear. É processo de bricolagem de memórias. Analisar esses processos pode dizer muito sobre quem somos e como reagimos ao que a realidade nos oferece.
No primeiro capítulo do livro O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, o médico Urbina, depois de um sonho, passou a carregar dentro de si a certeza de que a morte não era apenas uma probabilidade permanente, mas uma realidade imediata. Gabriel García Márquez capturou com exatidão a relação entre realidade e sonhos: Urbina sonhou o que era inevitável naquele momento.
Mutatis mutandis, o momento atual também tem afetado o mundo dos sonhos. Investigação recente liderada pela equipe da UFRN mostra que, de alguma maneira, estamos lidando com a pandemia e o isolamento social também nos sonhos. Narrativas de sonhos coletadas durante o período de quarentena (março e abril) foram analisadas e comparadas a narrativas coletadas antes da pandemia. Os resultados mostram que as narrativas de sonhos durante a pandemia se caracterizam por maior uso de palavras relacionadas à raiva e tristeza e, também, por maior número de palavras semanticamente relacionadas à contaminação e limpeza.
Observou-se, ainda, que o conteúdo semântico dos sonhos coletados se correlaciona com o estado mental do sonhador. Pessoas com sonhos que evocam a noção de limpeza apresentaram índices mais altos de dificuldades sociais, apresentando tendência a reclusão social, sem, no entanto, apresentarem dificuldades em construir a narrativa. Mas, o processo de olhar para os sonhos por um período em torno de um mês trouxe mais sentimentos positivos do que negativos.
Além disso, quando os sonhos eram dominados por conteúdos de contaminação, observar o sonhar trouxe mais à tona agressividade; da mesma forma, quando os sonhos eram dominados por limpeza, lembrá-los trazia mais ansiedade. Nota-se, portanto, por meio das narrativas de sonhos que estamos em estado de sofrimento mental.
De todo modo, fica para nós, povos ocidentais modernos, a conclusão de que os sonhos são poderosas fontes de informação sobre estados cognitivos e emocionais. Assim, antes de dormir, não peça para esquecer o que está acontecendo. Como os guaranis, peça bons sonhos para você, para os seus e para a humanidade.
* Pós-doc em neurociências e psiquiatria no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
* Doutora em linguística, é professora adjunta na PUC-Rio