A segunda edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), de junho de 2022, deu o que falar em 2022 ao revelar a dimensão da pobreza no Brasil, com 33,1 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar em 2022, colocando o país de volta no mapa da fome. Agora, um novo recorte desse estudo mostra um quadro mais preocupante, pois revela o rosto de quem são as pessoas mais impactadas por essa dura realidade do país: as mulheres autodeclaradas pardas e pretas que são chefes de família.
De acordo com o relatório que está sendo divulgado, hoje, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), uma em cada cinco famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pardas e pretas no Brasil sofre com a fome (20,6%) — o dobro em comparação aos lares chefiados por pessoas brancas (10,6%). O quadro é pior quando é considerada a diferença de gênero, pois 22% dos lares chefiados por mulheres autodeclaradas pardas e pretas sofrem com a fome, quase o dobro em relação a famílias comandadas por mulheres brancas (13,5%).
Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir da realização de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. Em comparação com o estudo anterior, de 2020, durante a pandemia, por exemplo, o percentual de domicílios comandados por pessoas pardas e pretas em condição de insegurança alimentar grave cresceu 74% no ano passado.
O estudo detalhado pode ser acessado no site Olheparaafome.com.br. "Esse estudo consegue marcar bem a desigualdade social e de gênero do relatório anterior. E quando começamos a trabalhar os dados da interseccionalidade entre o racismo e o sexismo, conseguimos entender mais porque a gravidade da fome ou da insegurança alimentar atinge de forma tão desigual os grupos populacionais", afirma Rosana Salles, pesquisadora da Rede Penssan e professora do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista ao Correio.
A pesquisadora reconhece que esse novo suplemento acabou demorando, porque, no ano passado, a constatação das 33,1 milhões de pessoas passando fome no país, foi bastante contestada pelo governo anterior. Vale lembrar que foi divulgado um estudo controverso do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) tentando desmentir os dados. "Isso acabou demorando um pouco mais porque levamos muito tempo respondendo aos ataques", recorda Rosana Salles. Ela reconheceu que os auxílios que foram retomados no ano passado e a ampliação do novo Bolsa Família, que chega a R$ 750 deve ajudar a reduzir esse quadro desalentador.
Mas não basta só isso. De acordo com Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam Brasil, uma das entidades que apoiaram o estudo, ele é mais um suplemento específico mostrando como o racismo estrutural está embutido na sociedade e acende o alerta para a adoção de políticas públicas. "É impressionante como todas as vezes em que fazemos algum estudo sobre desigualdade com novos dados de qualquer instituto, vemos que as pessoas mais afetadas são as mulheres negras e o resultado é sempre o mesmo", lamenta a executiva. "A fome atinge de forma diferenciada as mulheres negras no nosso país, e, para enfrentar isso é preciso uma política pública específica, porque a nossa dívida como sociedade é combater o racismo em diferentes níveis", ressalta.