Na bola e na bala

A dor da perda de irmãos das torcidas organizadas para a violência

Na última reportagem da série, o Correio faz um balanço do número de membros das duas principais torcidas organizadas do Distrito Federal, vítimas não da rivalidade entre elas, mas de homicídios devido à guerra por tráfico de drogas e brigas entre gangues ou desafetos. Especialista analisa o problema

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Darcianne Diogo
05/04/2024 06:00
9min de leitura

Uma comunidade em luto. Uma mãe em lágrimas. Uma ferida que não cicatriza. De 2014 a fevereiro deste ano, as torcidas organizadas Ira Jovem Gama e Facção Brasiliense perderam mais de 20 membros por mortes relacionadas ao crime. Jovens tiveram as vidas ceifadas em consequência da guerra pelo tráfico de drogas, de gangues e por desafetos. Ao público, as uniformizadas e os entes queridos das vítimas exteriorizam o sentimento de perda. Na quarta e última reportagem da série Na bola e na bala, o Correio Braziliense traz um balanço dos associados vítimas de homicídio no Distrito Federal (veja arte).

Apesar de os crimes não terem relação com a rivalidade entre as organizadas, as estatísticas retratam o cenário violento no DF há décadas. Em 2023, 226 pessoas morreram vítimas de homicídios dolosos (quando há intenção de matar) na capital federal: 214 homens e 12 mulheres. Os dados são do Mapa da Segurança Pública do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp). Neste ano, em janeiro e fevereiro, o levantamento da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) indicou 34 assassinatos.

As organizadas sentem na carne a perda de um “irmão de farda” para a criminalidade. Quase 80% dos membros desses grupos são adolescentes e jovens. Alguns acumulam passagens na polícia por tráfico de drogas, roubos, furtos e porte ilegal de arma de fogo. Aos que foram, fica a homenagem estampada em bandeiras e faixas.

O Correio detalha algumas das ocorrências nas quais os afiliados das torcidas foram vítimas. Na Ira Jovem Gama, de 2014 a fevereiro deste ano, ao menos 13 jovens foram assassinados. Entre eles, Diego Marques, do Bonde Oeste, morto à luz do dia, em 30 de março de 2018. Diego estava junto à namorada e o irmão, dentro de um ônibus. Ao descer na parada do Condomínio Total Ville, em Santa Maria, foi abordado por três criminosos. Eles estavam em um Ford Ka, detalha a ocorrência policial. Os autores indiciados são identificados como Marlos Junio Tavares e Victor Alberto do Carmo.

Segundo as investigações da época, o trio seguiu a vítima até o local, onde efetuou os disparos. A motivação seria por causa de uma guerra de gangues na região de Sobradinho. Testemunhas também relataram à polícia que, antes de morrer, Diego falava que vingaria a morte dos “irmãos”. Em 2017, Diego já havia sido alvo de um atentado, próximo à Universidade de Brasília (UnB).

O caso mais recente aconteceu em 11 de março. A criminalidade tirou a vida de Kaio Reis, 20. “Kadin”, como era conhecido, foi surpreendido a tiros na Quadra 1 do Setor Sul do Gama. Populares informaram à Polícia Militar que os autores estavam em uma moto no momento em que abordaram a vítima com ao menos cinco tiros. A motivação estaria relacionada a um acerto de contas. O caso segue sob investigação na 14ª Delegacia de Polícia (Gama).

Em julho do ano passado, Kelvin Oliveira, 23, foi executado com três tiros, na Quadra 30 do Setor Leste do Gama. Ex-membro do Bonde Oeste, o jovem é filho de um PM da reserva e a família dele mantinha um comércio próximo ao local do fato. “A gente ainda está sem acreditar. Quase um ano depois, a família está muito abalada. Não tem como não ficar. Ele era uma pessoa gente boa”, declarou um colega de Kelvin.

Nas redes sociais, as uniformizadas fazem questão de publicar notas de pesar pelos falecidos. “Manifestamos nossa solidariedade à família e aos amigos nesse momento de dor. Esperamos que sintam-se abraçados por nossa instituição e possam ser confortados pela lembrança das suas atitudes em vida. Saudades eternas.”
Em 2020, Matheus Vinícius de Araújo Oliveira teve a vida tirada de maneira covarde, perto de uma casa noturna do Gama. Na noite de 14 de março daquele ano, Matheus presenciou uma briga entre um casal e saiu em defesa da mulher, vítima de violência. O agressor, identificado como Ítalo Ígor Silva de Oliveira, xingou a mãe de Matheus, saiu em um carro e, depois, retornou em posse de uma arma.

Matheus foi atingido com um tiro na cabeça, levado ao hospital, mas não resistiu. Em agosto do ano passado, a Justiça condenou Ítalo a 16 anos e 10 meses de prisão em regime fechado pelo homicídio qualificado e por porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. Na decisão, os jurados consideraram que o assassino colocou em risco outras pessoas. O crime ocorreu em via pública.

 03/04/2024 Credito: Ed Alves/CB/DA.Press. Esportes - Especial Torcidas Organizadas. Mortes e Crimes.
03/04/2024 Credito: Ed Alves/CB/DA.Press. Esportes - Especial Torcidas Organizadas. Mortes e Crimes. (foto: Ed Alves/CB/DA.Press)

Meses depois, em novembro de 2020, João Victor Pires morreu na Quadra 15 do Setor Oeste do Gama. Testemunhas contaram à polícia que o rapaz e outros três colegas estavam em uma praça, quando um grupo em um carro preto se aproximou e pediu drogas. João e os amigos disseram que estavam apenas bebendo. Quando os suspeitos saíram, a vítima teria dito: “Vai com Deus”. Os assassinos não gostaram e mataram o ex-soldado do exército à queima-roupa.

Do outro lado

Em maio de 2016, a Facção Brasiliense perdeu um ex-presidente da torcida. Wallyson Stok fez parte da história da organizada e foi um dos líderes fundadores. Ao longo da trajetória, liderou o Comando Chaparral, assumiu a Diretoria de Patrimônio e Materiais, chegou à vice-presidência e, por fim, assumiu a presidência da entidade. Wallyson perdeu a vida em um suposto acerto de contas, segundo as investigações da época.
Mais de um ano depois, em 4 de agosto de 2017, Wesley Batista, 25, também integrante da Facção Brasiliense, foi assassinado a tiros no Taguaparque, em Taguatinga.

Aos 19 anos, Bruno Ferreira de Oliveira perdeu a vida depois de participar de um roubo de veículo, em Taguatinga Norte, em setembro de 2014. A vítima assaltada contou aos policiais que chegava em casa de carro, quando foi parada por dois autores armados. A mulher obedeceu os criminosos, saiu do carro e, ao entrar em casa, escutou um disparo de arma de fogo. Um outro vizinho afirmou ter visto um dos autores correndo na via, enquanto o corpo de Bruno estava no interior do veículo. A polícia não divulgou o desfecho do caso nem se o responsável pelo homicídio foi detido.

Bruno Eurípedes Rodrigues era membro da Facção Brasiliense. Em outubro de 2014, mudou-se para Goiás a fim de assumir a presidência da torcida Sangue Colorado, do Vila Nova. No mesmo mês, Bruno foi morto a tiros, no Setor Cidade Vera Cruz 2, em Aparecida de Goiânia. O assassinato até então tinha duas versões. A primeira hipótese dava conta de que Bruno e um colega estavam em uma casa, quando dois homens encapuzados entraram no local e efetuaram diversos disparos contra eles. A segunda versão, dada pela assessoria da Polícia Civil, era de que Bruno e o comparsa foram baleados ao trocar tiros com a polícia.

Para saber mais…

Um artigo publicado em 2022 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) fala sobre a Justiça e o futebol na jurisprudência do STJ. São abordados casos de indisciplina, violência e ofensas morais, em campo ou nas arquibancadas. Casos como esses viram processos judiciais, mas nem sempre são resolvidos no Poder Judiciário. As comissões disciplinares, os Tribunais de Justiça Desportiva e o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) formam uma estrutura de direito privado — são órgãos arbitrais —, porém de interesse público, previstos na Constituição Federal.

O texto distingue o papel da Justiça estatal e do STJ. Enquanto o primeiro recebe e julga um número expressivo de demandas relacionadas às atividades desportivas, o STJ trata sobre uma grande variedade de conflitos em torno do futebol. O artigo traz inúmeras explicações sobre o futebol na jurisprudência do STJ, a começar pela decisão da Terceira Turma, que determinou que as agressões físicas e verbais praticadas por jogador profissional contra árbitro, durante a partida, constituem ato ilícito indenizável na Justiça comum, independentemente de eventual punição aplicada pela Justiça Desportiva.

O caso em questão trata-se de um jogador que agrediu o juiz pelas costas e o ofendeu. Em primeira instância, o agressor foi condenado a pagar indenização de R$ 25 mil por danos morais, porém o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) considerou que a punição disciplinar da Justiça Desportiva seria suficiente.

O relator do REsp 1.762.786, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, observou que a conduta do jogador “não configurou transgressão de cunho estritamente esportivo e, por isso, pode ser submetida ao crivo do Poder Judiciário estatal e julgada à luz do Código Civil”. O magistrado ressaltou que o jogador, além de transgredir as regras do futebol, “ofendeu a honra e a imagem do árbitro”. Desse modo, segundo Cueva, surge o dever de indenizar a vítima que, no exercício regular de suas funções, sofreu injusta e desarrazoada agressão.

“No tocante à responsabilidade civil aplicada aos esportistas durante a prática de sua atividade, a doutrina preconiza que, mesmo naquelas modalidades em que o contato físico é considerado normal, como no futebol, ainda assim os atletas devem sempre zelar pela integridade física do seu adversário. Eventual ato exacerbado, com excesso de violência, que possa ocasionar prejuízo aos demais participantes da competição, pode gerar a obrigação de reparação”, afirmou o relator.

Outro ponto do artigo traz à tona o local do evento esportivo. A Terceira Turma do STJ considera que esse local vai além do estádio ou ginásio, mas compreende, também, o entorno. Por isso, “o time mandante que não oferecer segurança necessária para evitar tumultos na saída do estádio deverá responder pelos danos causados, solidariamente com a entidade organizadora da competição.”

O STJ ressaltou que, em ambos os processos, torcedores alegaram que sofreram agressões ou tiveram o patrimônio depredado pela torcida adversária nas proximidades dos estádios. O artigo 13 do Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003) garante aos torcedores o direito à segurança antes, durante e após os eventos esportivos.

A ministra Nancy Andrighi e o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva comentam. Segundo o texto, a magistrada apontou que, “conforme os artigos 14 e 19 do estatuto, o clube mandante deve organizar a logística no entorno do estádio de modo a proporcionar a entrada e a saída de torcedores com celeridade e segurança”. Cueva, por sua vez, ressaltou que “o clube detentor do mando de jogo tem responsabilidade objetiva – e solidária com a entidade que organiza a competição — diante dos prejuízos causados aos torcedores por falhas de segurança.”

Opinião

Welliton Caixeta Maciel, especialista em segurança pública, explica sobre o ingresso de jovens no mundo do crime. “Geralmente, a vida desses jovens foi estruturalmente marcada por diversos outros tipos de violências, evidenciadas também em processos de socialização primária e secundária caracterizados pelo ethos masculino de culto à virilidade, da contenção de emoções, do recurso ao uso da força física bruta, pela crueldade, pela desumanização do outro e de seus próprios corpos. Esses fatores nos auxiliam nessa compreensão desse ingresso, os percursos e trajetórias de vida tão curtos”, enfatiza o pesquisador vinculado ao Grupo Candango de Criminologia (GCCrim/FD). Para Caixeta, em situações como o tráfico de drogas, nas violências perpetradas por conta de acertos de contas ou no âmbito de torcidas organizadas, é perceptível “o pacto de morte por causa de uma cumplicidade entre homens e ciclos de extermínio, entre eles e outros, na violência feminicida, LGBTfobia e contra outros grupos sociais”.

capa esporte torcida organizada
capa esporte torcida organizada (foto: pacifico)

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Projeto e produção

Reportagem: Darcianne Diogo | Edição: Marcos Paulo Lima | Fotos: Ed Alves | Vídeos: Arthur Ramos e Samuel Calado | Arte: Maurenilson Freire | Tecnologia: Guilherme Dantas e Luíz Flores


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