
"Não sou ativo na igreja, mas todos os dias eu o acompanhava e ouvia. Descanse em paz, papa Francisco, você está entre os santos", disse, no Instagram, um homem dos Estados Unidos. "Sou ateia, mas realmente admirava Francisco. Uma perda tão grande justamente quando mais precisamos de compaixão e amor", comentou, na mesma publicação, uma mulher de Sydney, na Austrália. Da Inglaterra, um jovem admitiu: "Não sou religioso e me surpreendi com o tanto que me abalou a morte deste papa. Não sabia que ficaria tão afetado".
As manifestações de comoção e luto por Francisco, o "papa do povo", estão nas redes sociais, nas ruas, nas conversas entre amigos. Evangélica, Domitila Barroso, 41 anos, confessa que ficou triste quando, na segunda-feira de manhã, recebeu pelo WhatsApp a notícia da morte do líder máximo da Igreja Católica. "A gente já sabia que ia acontecer, mas não um dia depois de ele ter aparecido na Praça São Pedro", diz. "Sinto que perdemos muito, não só pela questão religiosa, mas por ele ser uma liderança, um exemplo de humildade. O papa estava sempre junto do povo e para o povo. Era único nesse quesito."
A psicóloga Daniela Persiano Queiroz, 42 anos, católica, se surpreendeu com a notícia da morte de Francisco. "Eu esperava que ele estivesse melhorando. Fiquei muito triste com a morte dele, porque foi um homem que sempre levou palavras de união, perdão, acolhimento, que é uma coisa que a gente não via há muito tempo na Igreja Católica", relata.
Conexão
O luto por Francisco é uma reação esperada, afirmam especialistas. "Muitos católicos, assim como não católicos, tinham o que se chama de conexão parassocial com o papa — mesmo sem nunca o terem conhecido", afirma Gary Small, chefe de psiquiatria do Centro Médico da Universidade de Hackensack, nos Estados Unidos. "Essas relações emocionais unilaterais são comuns com figuras públicas — a pessoa realmente sente que a conhece e se sente confortada pela conexão; portanto, quando a celebridade morre, ela lamenta sua morte como se fosse um amigo ou parente próximo."
A psicóloga clínica Brenda Valcarcel, de Brasília, também destaca o carisma do papa como um dos fatores que contribuem para a comoção global causada pela morte de Francisco. "Considero relevante o valor simbolizado na figura do papa Francisco por ser não somente uma autoridade religiosa, mas também por ter se aproximado afetivamente das pessoas como uma figura acolhedora, afetiva e de proteção", diz. "Nas postagens em redes sociais, é possível perceber como muitas pessoas o sentiam próximo; outras o tinham como figura de proteção e enfrentamento de questões que anteriores a ele não haviam sido abordadas", destaca.
A engenheira civil Sarah da Silva Brito, 29 anos, concorda com a especialista. "Independentemente da fé de cada um, o papa se tornou uma figura marcante, tanto no cenário religioso quanto no mundial. Ele trouxe uma visão mais sensível, levantou pautas que até então outros religiosos não tinham levantado", diz. "Ele foi um exemplo de liderança humana, de empatia, de diálogo. Foi uma pessoa mais acessível em relação a assuntos atuais que não eram tão expostos", acredita Sarah, que é católica.
Acolhimento
O acolhimento de Francisco às pessoas LGBTQIAPN é destacado por Rayssa Ferreira, 25 anos, diretora de conteúdo de uma agência de marketing e comunicação. "Sou lésbica e isso nunca me impediu de ter fé ou de viver minha espiritualidade dentro da Igreja Católica, mas sei que muitos são empurrados para fora, nunca conheceram o amor de Deus porque a Igreja se fechou", diz. "Quando soube da morte do papa, bateu uma tristeza. Foi como perder um irmão de caminhada, alguém realmente do bem. Jesus olhou para Maria Madalena. O papa Francisco olhou por nós. E é isso que fica para mim: a fé tem que ser para todos. Sem exceção."
O sentimento de luto deflagrado pela morte de figuras públicas, como o papa Francisco, também pode despertar uma espécie de catarse, destaca Renata Zonta, psicóloga do Hospital Brasília Águas Claras, da Rede Américas. "Mesmo em perdas simbólicas, o luto pode funcionar como uma catarse no sentido de liberação emocional, tendo em vista que a reação pode estar associada a eventos anteriores similares. Essa situação nos faz entrar em contato com emoções profundas, nos fazendo rever crenças, valores e significados sobre a vida e finitude", explica.
Segundo a neuropsicóloga Múria Carla Rodrigues do Nascimento Ribeiro, a exposição constante de figuras públicas na mídia também contribui para a tristeza gerada pela morte do papa. "O papa é uma figura muito importante, que tem uma cobertura maciça, na mídia e nas redes sociais. A constante exposição da morte, do velório, amplifica nas pessoas a tristeza, fazem com que vivenciem o luto. É como se fosse uma perda pessoal", diz.
Saiba Mais
Quatro perguntas para ...
Leandro Freitas Oliveira, psicólogo, doutor em neurologia e neurociências, professor da Universidade Católica de Brasília.
A sensação de orfandade em relação ao papa é uma reação comum por ele ser alguém conhecido ou pode ser atribuída à figura de Francisco?
Essa reação é absolutamente compreensível — e, na verdade, muito humana. Quando uma figura pública como o papa falece, especialmente alguém com uma presença simbólica tão forte quanto o papa Francisco, isso pode evocar diversas emoções e sentimentos profundos nas pessoas, mesmo naquelas que não têm ligação direta com a Igreja. O cérebro humano forma vínculos afetivos com pessoas que representam segurança, esperança ou valores importantes. O papa Francisco, com sua postura acolhedora, empática e progressista, simbolizava para muitos uma representação paterna universal — alguém que transcendia a instituição religiosa para tocar o emocional coletivo. Esse sentimento de "orfandade" vem justamente da quebra desse vínculo simbólico.
Como isso é processado no cérebro?
O cérebro não diferencia, em termos emocionais, um laço presencial de um laço simbólico. Ambos ativam redes neurais ligadas à empatia, à memória afetiva e ao apego. É por isso que a morte de quem nos identificamos, independentemente da presença física diária, pode nos atingir de forma tão real quanto a perda de alguém próximo fisicamente.
O luto por uma figura pública pode ser uma espécie de catarse?
Sim, pode ser, também, uma das formas de catarse — e mais do que isso, um processo de reorganização interna. Mesmo que a pessoa que faleceu nunca tenha feito parte do nosso convívio direto, o vínculo simbólico que criamos com ela é real. Ele é construído por meio da identificação, da admiração, da repetição de gestos, palavras e sentimentos que aquela figura representa. Nossa cognição não sabe o que é real ou imaginário. Quando perdemos alguém, algo dentro de nós também precisa ser revisto. Às vezes, não estamos chorando só por ela — mas por tudo o que ela nos fazia sentir: segurança, esperança, sentido, direção. E isso toca partes muito íntimas da nossa experiência humana. É como se essa perda nos autorizasse, muitas vezes sem que percebamos, a entrar em contato com outras dores que estavam ali, quietas, esperando espaço para emergir.
Como lidar com esse luto?
Emocionalmente, essa é uma chance de elaborar sentimentos, dar nome ao que nos habita, e até de nos reconhecer mais profundamente. Por isso, o luto simbólico pode ser uma grande forma de catarse: ele desengaveta emoções que nem sempre conseguimos acessar no dia a dia. E ao fazer isso, permite que a gente se reorganize por dentro — com mais consciência, sensibilidade e humanidade. Existe algo profundamente coletivo no luto público. Ele nos conecta. Nos faz lembrar que somos humanos, revela nossas fragilidades, finitude — mas também nossa capacidade de amar, admirar, e nos solidarizar com outros, mesmo sem conhecê-los pessoalmente. É um momento em que a empatia se sobrepõe à lógica. E isso, por si só, já é algo transformador. (PO)