
Um escândalo de grandes proporções veio à tona na Holanda após a implementação de um novo registro nacional de doadores de esperma. O sistema revelou que pelo menos 85 homens geraram mais de 25 filhos cada - número máximo permitido por lei desde 1992 -, expondo décadas de violações por parte de clínicas de fertilidade e gerando temores sobre riscos genéticos e falhas éticas no país.
A informação foi divulgada pela NVOG (Sociedade Holandesa de Ginecologia e Obstetrícia), que reconheceu a gravidade da situação. A entidade apontou que muitas clínicas reutilizaram amostras de esperma além do permitido, trocaram material genético entre si sem documentação ou consentimento e permitiram doações repetidas em diferentes estabelecimentos sem qualquer controle centralizado.
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"Em nome de toda a profissão, gostaríamos de nos desculpar. Não fizemos as coisas como deveriam ter sido feitas", declarou a ginecologista Marieke Schoonenberg ao programa de TV Nieuwsuur. Segundo ela, alguns doadores chegaram a gerar entre 50 e 75 filhos, e pelo menos dez dos chamados "doadores em massa" eram médicos especialistas em fertilidade.
Dentre os casos mais conhecidos está o do ginecologista Jan Karbaat, que usou o próprio sêmen em sua clínica de Roterdã e gerou ilegalmente mais de 100 filhos. Outro nome que ganhou notoriedade internacional é o de Jonathan Jacob Meijer, tema do documentário da Netflix "O Homem com 1.000 filhos", que teria ao menos 550 descendentes ao redor do mundo, mais de 100 deles concebidos em solo holandês.
De acordo com o portal britânico The Guardian, as consequências desse descontrole são profundas. Ties van der Meer, presidente da fundação Donorkind - que ajuda filhos de doadores a localizar suas origens - classificou o episódio como uma "calamidade médica". Ele estima que há na Holanda pelo menos 3 mil crianças com mais de 25 irmãos ou meio irmãos. Em um país de apenas 18 milhões de habitantes, os riscos de relações entre parentes sem conhecimento prévio são reais. "Essas crianças vão precisar fazer testes de DNA antes de começar a namorar", alertou.
As falhas também abalaram a confiança no sistema de saúde. Para Van der Meer, o comportamento de algumas clínicas foi motivado por interesses financeiros, ignorando o impacto emocional nas famílias envolvidas. Ele critica ainda a desumanização do processo: "Reduziram tudo a uma questão de DNA, como se doadores e irmãos não tivessem nenhum laço significativo".
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A legislação holandesa tem tentado se adaptar. Desde 2004, os doadores deixaram de ser anônimos, e em 2018 o número máximo de filhos por doador caiu para 12. No entanto, só em abril deste ano, o registro nacional foi implementado com eficácia retroativa, revelando pela primeira vez o número exato de descendentes por doador. Agora, tanto mães quanto doadores são registrados em um banco de dados centralizado, facilitando a fiscalização.
O Ministério da Saúde prometeu informar o parlamento, e a NVOG pediu que mães, crianças e doadores entrem em contato com suas clínicas para obter informações detalhadas. A Donorkind também solicitou o governo a oferecer apoio psicológico gratuito às famílias afetadas.
Em meio ao trauma e à indignação, o país enfrenta o desafio de reconstruir a confiança no sistema médico e garantir que o direito à identidade e à verdade seja respeitado para as gerações nascidas desse sistema.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Thiago Prata