JUSTIÇA

É mais importante ter generais como Braga Netto e Heleno como réus do que Bolsonaro, diz historiador

Professor de História da UFRJ, Carlos Fico avalia que julgamento de generais por tentativa de golpe terá impacto simbólico para as Forças Armadas.

Professor Carlos Fico é professor na UFRJ e um dos principais especialistas na história dos militares na política do Brasil -  (crédito: BBC News Brasil)
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Professor Carlos Fico é professor na UFRJ e um dos principais especialistas na história dos militares na política do Brasil - (crédito: BBC News Brasil)

Nesta terça-feira (25/3), as atenções do mundo político se voltarão para a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Seus cinco ministros vão julgar a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por crimes como tentativa de golpe de Estado no contexto das eleições de 2022. Se eles acatarem a denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR), Bolsonaro vai virar réu neste processo.

O julgamento é aguardado à esquerda e à direita dada a relevância política do ex-presidente. Mesmo fora do poder, ele é considerado por políticos e especialistas como a maior liderança da direita no Brasil, neste momento.

Mas para o professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Fico, mais importante que a possibilidade de Bolsonaro virar réu por tentativa de golpe é a chance de que isso aconteça a oficiais generais das Forças Armadas.

"Eu acho mais importante a admissão (da denúncia) [...] a passagem à condição de réu dos generais Braga Netto e (Augusto) Heleno. Mais até que do que em relação ao ex-presidente Bolsonaro", defende Fico em entrevista à BBC News Brasil.

No julgamento desta semana, o STF vai avaliar a denúncia contra um dos núcleos da acusação feita pela PGR. Além de Bolsonaro, fazem parte deste núcleo:

  • o ex-comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier
  • o ex-ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira
  • o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno
  • o ex-ministro da Defesa e candidato à vice-presidente na chapa de Bolsonaro, general Walter Braga Netto
  • o deputado federal e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem
  • o ex-ajudante-de-ordens de Bolsonaro, o major Mauro Cid e o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres

As defesas de todos, exceto Mauro Cid, alegam inocência e negam qualquer participação na suposta tentativa de golpe. Mauro Cid, por sua vez, firmou um acordo de colaboração premiada com a Justiça e admitiu condutas irregulares.

Carlos Fico é professor titular de História e um dos principais pesquisadores do Brasil sobre o papel dos militares na história política do país.

Ele é autor de livros como "O golpe de 1964: momentos decisivos" e atualmente está escrevendo outro sobre todos os golpes ou tentativas de golpe orquestradas por militares no Brasil.

Ele sustenta que o julgamento desta semana pode gerar situações inéditas na história do Brasil.

Segundo ele, nunca um ex-presidente e oficiais generais foram processados e julgados por tentativas de golpe de Estado.

Crítico do que ele chama de "tradição intervencionista" das Forças Armadas, ele diz que a ida de oficiais generais como Braga Netto ou Augusto Heleno para o banco dos réus por tentativa de golpe terá um forte impacto.

"Levar esses generais, embora eles estejam na reserva, à condição de réus acusados de planejar um golpe de Estado tem muito significado político e simbólico", afirma o professor.

Na entrevista à BBC News Brasil, Fico diz, no entanto, que não acredita que o julgamento poderá acabar com a crença entre militares de que eles podem atuar como "poder moderador" da República. Isso só começaria a acontecer se o Congresso Nacional alterasse a redação do artigo nº 142 da Constituição Federal.

O artigo descreve as atribuições das Forças Armadas e é frequentemente citado por militantes de direita que defendiam uma intervenção militar após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022. Para Fico, é preciso alterar a redação do artigo para acabar com as interpretações de que os militares poderiam atuar como um poder moderador.

Fico também diz não acreditar que o julgamento vai reduzir o eleitorado de Bolsonaro, que o ex-presidente tenta se posicionar como um "mártir" político e defende que o Congresso Nacional não aprove anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023.

"A tradição brasileira de leniência com militares golpistas tem sido muito prejudicial no sentido de fazer persistir esse entendimento equivocado entre os militares de que eles seriam um garantidor da República com direito de intervir em situações de crise", diz o professor.

Confira os principais trechos da entrevista concedida por Carlos Fico à BBC News Brasil:

Carlos Fico usando camisa preta diante de uma prateleira de livros
BBC News Brasil
Professor Carlos Fico é professor na UFRJ e um dos principais especialistas na história dos militares na política do Brasil

BBC News Brasil - O Brasil poderá ter um ex-presidente e oficiais das Forças Armadas na condição de réus por tentativa de golpe de Estado. Qual é a relevância histórica disso?

Carlos Fico - A relevância é o ineditismo. É claro que já houve no passado situações assemelhadas. A mais parecida envolveu o ex-presidente Hermes da Fonseca, que governou o Brasil de 1910 a 1914 e se envolveu numa tentativa de golpe em 1922. Também tem um filho envolvido, o Euclides Hermes da Fonseca, que era o comandante do Forte de Copacabana. Foi o famoso episódio dos "18 do Forte". Esse episódio foi uma tentativa de golpe militar contra o presidente Epitácio Pessoa e, tudo indica, à frente do qual estava o ex-presidente Hermes da Fonseca, que foi preso e foi submetido a um inquérito, mas acabou morrendo antes que o inquérito se concluísse. É o único caso assemelhado e muito distante na história de modo que o envolvimento de um ex-presidente numa tentativa de golpe e ele ser submetido a julgamento é algo inédito. Mas tem algo ainda mais inédito. Vários militares, no passado, já foram submetidos à prisão, no entanto, isso sempre no contexto de crises institucionais muito graves e, por ordem do Executivo. Então, temos um outro ineditismo porque o julgamento desta tentativa de golpe de 2022 está sendo conduzida em período de normalidade democrática e pelo Poder Judiciário, com todas as garantias processuais.

BBC News Brasil - O que mudou na estrutura social e política do Brasil que permite que isso esteja acontecendo?

Fico - O que mudou foi o empoderamento que a Constituição de 1988 deu ao STF e à Procuradoria-Geral da República. Antes de 1988, esses órgãos não tinham o papel privilegiado que têm hoje. Isso tem um impacto muito grande porque as investigações estão se dando num contexto de normalidade democrática e com instituições fortes [...] É esse fortalecimento institucional que garante a normalidade democrática do momento e o possível julgamento dessas pessoas.

BBC News Brasil - Há muitos militantes de direita que concordam que isso só está ocorrendo em razão do empoderamento do STF. Segundo eles, haveria uma espécie de "superempoderamento" do STF. Na sua avaliação, o fato de Jair Bolsonaro e militares poderem virar réus é positivo ou negativo para a sociedade brasileira?

Fico - É altamente positivo que o STF tenha a última palavra sempre, ainda que erre. Do contrário, quem vai decidir? As Forças Armadas? A população nas ruas? Para o perfeito funcionamento da democracia é necessário que o Poder Judiciário tenha a última palavra [...] Se as coisas estão sendo conduzidas de acordo com as regras emanadas pela Constituição, não vejo como isso pode ser considerado negativo. Até porque nós temos uma tradição muito negativa de intervencionismo militar na qual as Forças Armadas se consideravam o poder moderador e teriam a palavra final, como se fosse um equivalente ao poder poder moderador do Império.

BBC News Brasil - Que impacto, se é que algum, esse julgamento vai ter sobre essa tradição?

Fico - Olha… inclusive eu acho mais importante a admissão (da denúncia) [...] a passagem à condição de réu dos generais Braga Netto e (Augusto Heleno)...mais até que do ex-presidente Bolsonaro. Do meu ponto de vista, a qualificação desses dois generais tem mais importância. Levar esses generais, embora estejam na reserva, à condição de réus acusados de planejar um golpe de Estado tem muito significado político e simbólico. Me parece que as Forças Armadas, como se diz na economia, já precificaram uma eventual condenação desses dois generais usando estratégia de distinguir a instituição dos indivíduos que a compõem.

Mauro Cid, usando farda do Exército, sentado diante de um microfone, durante uma audiência da CPMI dos atos antidemocráticos
EPA
Mauro Cid, com farda do Exército, ficou em silêncio na CPMI dos atos antidemocráticos

BBC News Brasil - Que sentido simbólico é esse?

Fico - O sentido de que nenhum militar golpista na história do Brasil, e foram muitos, nenhum jamais foi punido. Vou lançar um livro em maio no qual eu demonstro isso estudando todas as tentativas de Golpe desde a proclamação da República até o último, em 2022. Alguns até foram alvo de inquéritos ou processos disciplinares, mas logo o Congresso Nacional aprovou uma anistia [...] Isso vai modificar a realidade da democracia brasileira, que tem essa fragilidade estrutural da presença intervencionista dos militares? Eu acho que não. O que realmente vai alterar esse quadro da tradição de intervencionismo militar no Brasil são outras iniciativas, como a mudança da redação do artigo 142 na Constituição Federal.

BBC News Brasil - Por que, na sua avaliação, esse julgamento não vai mudar a realidade da democracia brasileira?

Fico - Em relação às consequências desse julgamento, eu posso dizer duas coisas. Uma é que, sim, esse julgamento terá um impacto simbólico, sobretudo no interior das Forças Armadas, porque se trata de uma coisa inédita. Mas não me parece que o intervencionismo militar vá se resolver com esse julgamento. Eu acho que a tradição de intervencionismo militar somente vai terminar, numa perspectiva otimista, se a sociedade brasileira, por meio do Congresso Nacional, alterar a redação do artigo 142, mas me parece que isto não está no horizonte. Creio que isso seria fundamental para dizer claramente para as Forças Armadas que elas não são garantidoras dos poderes constitucionais e muito menos poder moderador.

BBC News Brasil - O argumento de Bolsonaro, de que não houve tentativa de golpe por não ter havido uso da força faz sentido?

Fico - Houve uma tentativa de golpe que fracassou supostamente porque a maioria do Alto-Comando do Exército não aderiu — algo bastante preocupante porque, nesse caso, teria havido o apoio de alguns integrantes e os demais não denunciaram a existência do plano [...] O crime em questão é a tentativa. A tentativa de golpe teria sido bem-sucedida se tivesse havido adesão dos militares e emprego, ainda que persuasivo, da força.

BBC News Brasil - Há um movimento liderado por militantes de direita defendendo a anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023. Também há um entendimento de que ela poderia beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro. Qual sua opinião sobre essa tentativa de aprovar uma anistia?

Fico - Em todos os episódios de tentativas de golpe de Estado, sempre houve anistia aos militares. Neste caso mais recente, temos a peculiaridade do envolvimento de civis nos episódios de 8 de janeiro de 2023. Provavelmente, surgirá uma pressão, também, em relação à anistia desse núcleo conspirador que vai a julgamento agora. Isso sempre aconteceu. Minha surpresa seria se não houvesse nada nesse sentido [...] Eu espero que não haja a anistia caso haja condenação das pessoas envolvidas, seja no núcleo conspirador, seja em outras atividades igualmente condenáveis.

Generais Paulo Nogueira, Walter Braga Netto (à esquerda) ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro e do ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier
Marcos Corrêa/Presidência da República
Generais Nogueira e Braga Netto (esq.), ex-presidente Bolsonaro e o almirante Garnier podem virar réus se STF aceitar denúncia contra eles feita pela PGR

BBC News Brasil - Por que o senhor espera que não haja anistia?

Fico - Eu espero que não haja porque a tradição brasileira de leniência com militares golpistas tem sido muito prejudicial no sentido de fazer persistir esse entendimento equivocado entre os militares de que eles seriam um garantidor da República com direito de intervir em situações de crise. Vimos os episódios que marcaram o governo Bolsonaro. A todo momento, os generais Heleno e (o ex-vice-presidente Hamilton) Mourão falavam do artigo nº 142 como se ele desse às Forças Armadas o direito de intervir em situações de crise. O fato de ter havido anistia aos militares golpistas na história republicana foi sempre muito negativa porque deu a impressão de que a sociedade não se incomodava.

BBC News Brasil - Os atuais defensores da anistia aos envolvidos no 8 de janeiro têm feito uma comparação com a campanha da anistia que resultou na lei da anistia de 1979. É possível comparar uma coisa à outra?

Fico - As pessoas que fazem essa comparação não conhecem a história do Brasil [...] Há pessoas que se referem à ditadura militar e dizem: "Ah! Mas não vão ver os dois lados?". Mas que dois lados? Na esquerda, que se posicionou contra a ditadura militar, ou as pessoas foram mortas ou os que não foram mortos foram presos, julgados e condenados por uma justiça militar muito dura. Foram milhares de condenações de opositores do regime pela justiça militar. A campanha da anistia visava dar anistia a pessoas que foram condenadas de forma muito brutal e aos que conseguiram sobreviver à tortura [...] Não há equivalência possível entre a atitude de oposição a um regime ditatorial que matava e torturava e o momento atual.

BBC News Brasil - Qual o risco de aumento da polarização política no Brasil em função deste julgamento envolvendo Bolsonaro e militares?

Fico - Não gosto da palavra polarização porque dá a impressão de que a gente está vivendo uma coisa inédita do ponto de vista político como essa contraposição entre setores. Isso sempre acontece [...] É claro que o julgamento do ex-presidente Bolsonaro e do restante do núcleo conspiratório vai ser também utilizado por todos os setores políticos como arma de proselitismo político.

BBC News Brasil - Que efeitos esse julgamento terá para o tamanho do bolsonarismo?

Fico - Não faço ideia. O que a gente tem percebido em relação a essas lideranças de extrema direita, não só aqui no Brasil, mas em outras partes do mundo, é que mesmo quando elas estão envolvidas em situações criminosas, ainda assim, o seu eleitorado se mantém fiel [...] Ele (Bolsonaro) não me parece ter perdido, até o presente momento, o seu eleitorado mais fiel. Não sei se uma eventual condenação terá impacto do ponto de vista da fidelidade do seu eleitorado.

BBC News Brasil - Na sua avaliação, qual a probabilidade de Bolsonaro se transformar numa espécie de mártir político a partir desse julgamento?

Fico - Tornar-se mártir é tudo o que o ex-presidente Jair Bolsonaro está tentando fazer. Ele tenta se colocar como vítima, o que é uma estratégia bastante comum de lideranças políticas que são pegas pela Justiça. Agora, essa estratégia vai emplacar? Realmente, eu não sei. Provavelmente, entre o eleitorado mais fiel vai emplacar [...] Agora, para a sociedade como um todo, eu não sei. Muito provavelmente não vai colar porque ao longo do julgamento, sobretudo se esse julgamento for transmitido pela TV Justiça, vão ficar evidentes essas provas que foram colhidas pela Polícia Federal e elas são muito eloquentes [...] Muitas vezes, as coisas dependem não apenas das tecnicalidades da Justiça, mas da maneira como a justiça é feita.

BBC
Leandro Prazeres - Da BBC News Brasil em Brasília
postado em 25/03/2025 06:12 / atualizado em 25/03/2025 07:33