
Num mundo chacoalhado pelo tarifaço do governo Donald Trump, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou à Ásia, destino de sua primeira viagem internacional de longa distância após complicações do acidente doméstico que sofreu em outubro.
Com visitas ao Japão, parceiro de longa data (130 anos) do Brasil, e ao Vietnã (35 anos), parceiro mais recente, o governo brasileiro destaca suas relações que vão além das duas maiores potências — Estados Unidos e China —, em um momento turbulento da política global.
O presidente desembarcou em Tóquio na manhã desta segunda-feira (24/3, no horário local, noite de domingo em Brasília), com dois itens principais na pauta de comércio: o pleito de longa data para que o Japão libere a compra de carne bovina e suína do Brasil e o avanço nas discussões de um acordo entre Mercosul e Japão
Mas a previsão não é de que o governo brasileiro consiga grandes anúncios nessas áreas durante a viagem, segundo reconhecem inclusive integrantes do governo (entenda mais abaixo). Um deles argumenta, em conversa reservada, que a visita de Lula representa um "impulso político" numa relação que precisa de "revitalização".
A recepção de Lula em Tóquio é no raro formato de visita de Estado — a última que o Japão havia promovido foi para Donald Trump, em 2019.
A visita de Estado ao Japão inclui honrarias que não costumam acontecer em outras visitas, como um banquete de recepção pelo imperador e a imperatriz, e a apresentação da família imperial ao chefe de Estado.
Além do encontro com o Imperador Naruhito e a Imperatriz Masako no Palácio Imperial, Lula tem reunião com o primeiro-ministro do Japão, Shigeru Ishiba, no Palácio Akasaka e participação no Fórum Empresarial Brasil-Japão, entre outros compromissos.
Na quinta-feira (27/3), Lula embarca para Hanói, capital do Vietnã, onde tem previstos encontros com o primeiro-ministro do país, Pham Minh Chính, e o presidente do Vietnã, Luong Cuong, entre outras autoridades. No domingo (29/3), retorna ao Brasil.
A viagem de Lula, de pouco mais de uma semana, acontece num momento com desconfortos relevantes para ele no Brasil: o presidente vê sua popularidade cair e a inflação aumentar, e lida com pressões de partidos de sua base diante de uma reforma ministerial a ser concluída.
Nomes do centrão, aliás, também estão entre as autoridades que acompanham o presidente. Estão em Tóquio mais de dez ministros na comitiva de Lula, os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), além do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e do deputado Arthur Lira (PP-AL).
Nesse contexto, o que é importante na visita de Lula à Ásia agora e o que dá pra esperar dela?
Além da China
Fortalecer e intensificar relações comerciais e diplomáticas com outros países, além dos gigantes China e Estados Unidos, é o que o Brasil e outros países vêm buscando no atual contexto geopolítico, destacam especialistas brasileiros e japoneses ouvidos pela BBC News Brasil.
"A gente está buscando uma diversificação — e não só o Brasil, na verdade. Se a gente olhar o mundo, as mudanças nos Estados Unidos e da postura dessa superpotência no sistema internacional têm feito com que os países busquem diferentes formas de lidar e de reequilibrar sua influência internacional", diz a pesquisadora em Relações Internacionais na UnB Bárbara Dantas Mendes, que estuda política externa do Japão.
O professor de Relações Internacionais da FGV Pedro Brites diz que o movimento do Brasil de mostrar que "não está dependente só das relações com essas duas principais potências" encontra "respaldo em um movimento que o próprio Japão faz, de diversificar seus parceiros, que historicamente foram muito centrados no ocidente e nos principais parceiros asiáticos".
Shuichiro Masukata, professor associado da Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio, que estuda a relação do Japão com o Brasil, disse à BBC News Brasil que "com a ordem internacional liberal liderada pelos EUA abalada e a China em ascensão, o mundo enfrenta riscos cada vez maiores" e que "a importância de fortalecer a parceria" entre Japão e Brasil está crescendo.
"O G7 tem se mostrado disposto demais a colocar valores, democracia e direitos humanos na esteira dos países emergentes e em desenvolvimento. Isso teve o efeito oposto. A narrativa da China de que 'o Ocidente pressiona e prega a democracia, mas o foco da China está primeiro na solução da pobreza e na estabilização da ordem internacional' se espalhou de forma persuasiva", disse.
Quando foi questionado se o tarifaço dos EUA dá tração a um eventual acordo entre Japão e Mercosul, além de negociações com a Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), o embaixador Eduardo Saboia, secretário de Ásia e Pacífico do Itamaraty, respondeu que "tanto Japão, quanto Vietnã, quanto Brasil são países que se beneficiam de um mundo onde o comércio é regulado por normas".
"Provavelmente, haverá uma manifestação de apoio a um mundo onde o comércio é regulado por normas multilaterais", disse. "Quando países importantes se reúnem e apoiam isso, isso ajuda o movimento de contraponto às tendências de desagregação."
'Aproximação crescente'

A viagem de Lula reflete a "aproximação crescente" do Brasil com a Ásia como um todo, e não apenas com os chineses, diz o ex-embaixador do Brasil nos EUA e no Reino Unido Rubens Barbosa.
"O Itamaraty está muito consciente de que a Ásia hoje é a área mais importante, em crescimento, da relação comercial e econômica com o Brasil", diz ele, que não vê uma relação direta da viagem de Lula à Asia com as medidas anunciadas por Trump.
"Não é [uma aproximação] com a China, é com a Ásia", diz. "O Brasil é observador da Asean já há algum tempo, e agora o Mercosul acabou de assinar um acordo com Singapura [dezembro de 2023]. E o Brasil está abrindo conversas com os outros países — Vietnã, Indonésia..."
As exportações brasileiras para a Ásia em 2024 somaram US$ 144 bilhões, o que representa 42,8% do total das vendas externas do Brasil no ano. A China concentrou 28% das exportações brasileiras e o Japão, 1,7%.
As exportações brasileiras para o Japão, no entanto, caíram 15% de 2023 para 2024.
O fluxo comercial entre Brasil e Japão totalizou US$ 11 bilhões em 2024, com superávit de US$ 146 milhões para o Brasil.
Entre os produtos que o Brasil vende para o Japão estão minério de ferro, carne de frango e soja em grãos. Do outro lado, o Japão vende para o Brasil produtos industrializados e com maior valor agregado, como máquinas, equipamentos, semicondutores e veículos.
Tales Simões, pesquisador do Grupo de Estudos sobre Ásia do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP destaca que "o presidente Lula está indo em busca de expandir mercados e investimentos", mas sem abrir mão de relacionamentos antigos.
"Sabemos que a política externa do Lula enfatiza o estreitamento de laços com o sul global, mas isso não ocorre em detrimento das parcerias tradicionais com países do norte global. E o Japão é um caso ilustrativo", diz ele, que tem pesquisa focada em Mercosul e Asean.
'Momento decisivo'?
O embaixador Eduardo Saboia manifestou a expectativa do governo de brasileiro de liberar a importação de carne brasileira no Japão — um pleito que já dura quase duas décadas.
"A gente tem como base essa boa relação [com o Japão], de vínculos humanos, econômicos, mas queremos avançar. Uma das nossas expectativas é a abertura do mercado japonês para produtos agropecuários brasileiros, especialmente carne bovina e suína in natura", disse.
A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), que reúne 43 empresas responsáveis por 98% da carne negociada para mercados internacionais, disse em nota que as negociações sobre o tema têm um "momento decisivo para sua conclusão" com a viagem de Lula ao Japão.
Segundo a associação, o Brasil exporta cerca de 25% da carne bovina produzida no país para centenas de países. E o Japão é o terceiro maior país importador de carne bovina do mundo, com 80% do volume proveniente dos Estados Unidos e da Austrália.
Apesar da pressão, um anúncio conclusivo não é esperado para a visita de Lula.
Ainda há procedimentos necessários para isso acontecer, como o envio de uma missão sanitária japonesa para avaliação do risco no Brasil — e um compromisso nesse sentido seria visto como um avanço para o setor.
Até a véspera da chegada de Lula, no entanto, não era claro se os japoneses se comprometeriam — com uma previsão de data, por exemplo — a confirmar o envio da missão sanitária.
Em conversas privadas, integrantes do governo brasileiro argumentam que a sensibilidades do governo japonês nesse tema vão além da questão sanitária, e que abrir o mercado para o Brasil e o Mercosul "assustam um pouco".
Tomoyuki Yoshida, diretor-executivo do Japan Institute of International Affairs (Instituto Japonês de Relações Internacionais), disse à BBC News Brasil que "é verdade que há preocupações e ansiedade do setor agrícola".
"Eles estão preocupados com a concorrência com as importações do Brasil", diz ele, que foi diretor-geral para América Latina e Caribe do Ministério de Relações Exteriores do Japão.
O argumento do governo brasileiro é de que a carne brasileira não compete com a produção de versões mais "premium" nas fazendas japonesas.

Outra expectativa do governo brasileiro, que também não tinha muitas garantias até a chegada de Lula ao Japão, é avançar nas discussões da relação entre Mercosul e Japão.
"Existe um diálogo entre o Japão e o Mercosul. (...) O que a gente ser saber é: vamos ficar nessa conversa ou vai ter uma negociação? Há um ponto de interrogação. A visita do presidente é um interesse de avançar nessa área", disse Saboia.
Durante a viagem da comitiva brasileira ao Japão, que também marca os 130 anos de relações entre os dois países, há a previsão da assinatura de cerca de 80 atos — no setor público e no privado, em áreas como recuperação de pastagens, ciência e tecnologia, combustível sustentável.
O Brasil está também "trabalhando a venda de 15 a 20 aviões através da Embraer", segundo afirmou o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, ao chegar na comitiva a Tóquio.
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