ENTREVISTA EXCLUSIVA

Nobel da Paz iraniana fala sobre tortura e resistência: 'A prisão não fez com que eu me rendesse'

A ativista iraniana Narges Mohammadi enfrentou tortura, anos de prisão e confinamento na solitária. Em 2023, ganhou o Prêmio Nobel da Paz por lutar pelos direitos das mulheres. Ao Correio, falou sobre a repressão e sobre seus sonhos 

Narges Mohammadi, iraniana Nobel da Paz -  (crédito: Reihane Taravati/Getty Imagens/AFP)
Narges Mohammadi, iraniana Nobel da Paz - (crédito: Reihane Taravati/Getty Imagens/AFP)
Narges Mohammadi, 52 anos, tornou-se um ícone da resistência contra o regime teocrático islâmico do Irã. A ativista tem travado uma batalha incansável contra a opressão das mulheres e pela promoção dos direitos humanos e a liberdade na terra dos aiatolás. Destemida, foi presa 13 vezes desde a adolescência — em quatro delas ficou trancafiada numa cela solitária. Também foi condenada a 31 anos de prisão e 154 chibatadas.
Em 4 de dezembro passado, Narges obteve liberdade provisória para tratar de um tumor benigno na perna que exigiu a implantação de um enxerto ósseo e saiu da notória prisão de Evin, em Teerã. Em 2023, ela tornou-se a segunda iraniana da história a ganhar o Prêmio Nobel da Paz — a advogada Shirin Ebadi recebeu a distinção exatamente duas décadas antes.

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Em entrevista exclusiva ao Correio, por e-mail, Narges falou sobre o Nobel da Paz, o sofrimento na prisão, a opressão exercida pelo regime e a promessa de seguir sua luta. "Eu acredito que a democracia, sem os direitos das mulheres, é algo impossível", declarou. Leia a entrevista:

Como a senhora tomou conhecimento de que havia ganhado o Nobel da Paz? 

Eu soube na prisão qte eu tinha sido indicada para o Prêmio Nobel da Paz pelo terceiro ano consecutivo. As pessoas de meu entorno acreditavam que eu ganharia este importante prêmio global.  Quando escutei a notícia sobre minha vitória, meus pensamentos imediatamente foram para Mahsa Jina Amini, para as ruas repletas de manifestantes e para aquelas pessoas executadas na prisão. Eu disse a mim mesma que o prêmio pertence ao povo, a todos os manifestantes e a cada iraniano que se rebelou. 

Qual é o símbolo deste prêmio, para a senhora?

O povo do Irã merece esse reconhecimento global e essa honra. A concessão do prêmio a uma ativista dos direitos humanos aprisionada e com uma longa história de lutas civis trouxe uma mensagem clara para o mundo: no Irã, enfrentamos prisão e tortura simplesmente por defendermos os direitos das mulheres, os direitos humanos e os direitos básicos do povo. Depois do movimento "Mulher, Vida, Liberdade", o prêmio mostrou que o mundo vê a luta das mulheres iranianas e escuta suas vozes. Foi uma importante mensagem para o regime. 

Quando a senhora começou a luta pelos direitos das mulheres iranianas?

Meu ativismo começou durante meus anos de estudante.  Minha primeira prisão ocorreu ainda durante o movimento estudantil. Desde então, fui presa várias vezes, submetida a confinamento na solitária e à tortura psicológica. Também sofri espancamentos, assédio, julgamentos. A República Islâmica é uma flagrante violadora dos direitos humanos e das mulheres. Por sua própria natureza, falta-lhe a capacidade de liberdade, democracia e igualdade. Ao longo dos últimos 46 anos, ela demonstrou, repetidamente, a incapacidade de uma  reforma. O regime só sabe como suprimir críticas, protestos e dissidências.

Que impacto tantos anos de prisão tiveram sobre seu ímpeto de mudança? 

Por décadas, enfrentamos a realidade de "prisioneiros políticos e ideológicos". Lutamos pela liberdade de expressão e pensamento, os quais o regime reprime implacavelmente. Em tal ambiente, é inevitável que alguém como eu, trabalhando pelos direitos humanos, pelos direitos das mulheres, pelo fim da tortura branca e do confinamento solitário e pela abolição da pena de morte — por meio do ativismo institucional e coletivo — enfrentaria repressão constante do regime. A prisão, embora me privasse da liberdade de trabalhar em espaços públicos e organizações que construímos meticulosamente, não fez com que eu me rendesse. Resolvi intensificar meu ativismo, mesmo enquanto estava encarcerada. Isso incluiu entrevistar outros prisioneiros; documentar os casos de tortura, assédio sexual, tortura branca em confinamento solitário e execuções; emitir declarações frequentemente contrabandeadas sob grande risco; e publicar o livro White Torture.
Narges Mohammadi, iraniana Nobel da Paz
Narges Mohammadi, iraniana Nobel da Paz (foto: Reprodução/Instagram)

Quais foram as principais violações dos direitos humanos sofridas pela senhora na prisão?

Até o momento, fui mantida em confinamento solitário quatro vezes. No meu livro White Torture, descrevi como o isolamento priva uma pessoa de seus sentidos, deixando-a exposta a uma intensa pressão psicológica e a interrogatórios excruciantes. Durante as prisões, muitas vezes fui severamente espancada, arrastada pelos cabelos e jogada em veículos. Uma vez, fui ameaçada com uma arma dentro de um carro. No pátio da Prisão de Evin, fui submetida a intensa agressão física. Alguns dos meus companheiros de prisão compartilharam relatos horríveis do abuso e tortura que sofreram ao longo dos anos. A República Islâmica usa todos os meios para pressionar os prisioneiros, incluindo explorar suas doenças. Muitos prisioneiros morreram na detenção devido à negligência médica, um padrão que continua. Afirmei, repetidamente, que, quando os prisioneiros enfrentam doenças graves, o regime explora a situação, negando-lhes acesso ao tratamento e administrando seus cuidados de uma forma que muitas vezes os levam à morte. Às vezes, nós, prisioneiros, sobrevivemos puramente por acaso.

Como a senhora definiria o regime do Irã? 

A República Islâmica é uma ditadura teocrática. Seu histórico de 46 anos claramente demonstra sua oposição à democracia, à liberdade de expressão e de crença, à participação pública, à sociedade civil, aos direitos humanos, aos direitos das mulheres e à proteção do meio ambiente. Uma de minhas mais profundas preocupações é a destruição rápida e devastadora do meio ambiente, cometida pelo regime. Na ausência de instituições civis poderosas, o governo opera sem ser supervisionado, empurrando o meio ambiente rumo à aniquilação. Em um mundo onde os temas ambientais são uma preocupação crítica, o povo do Irã testemunha a degradação de sua terra. Acredito que, na transição da República Islâmica como uma ditadura teocrática para um Irã que embarque no caminho da democracia, precisaremos de uma sociedade civil forte. 

Que sonhos a senhora cultiva em relação ao Irã?

Meu sonho para um Irã livre é o de uma terra onde a teocracia despótica tenha se encerrado e sido substituída por um governo secular estabelecido por meio da vontade do povo, de uma maneira democrática. Este governo deve garantir os direitos das mulheres e os direitos humanos, nos permitindo participar ativamente de uma sociedade civil forte e de suas organizações. Um país onde o seu povo viva em paz, prosperidade e progresso. 

Como vê o futuro da luta pelos direitos das mulheres?

Apesar dos imensos desafios, as mulheres iranianas permanecem determinadas a continuarem sua batalha contra as leis do hijab (véu islâmico) compulsório, que se tornaram um marco da tirania religiosa do regime. Este movimento vai além dos direitos das mulheres: é uma luta pela democracia, pela igualdade e pela liberdade. Acredito firmemente que democracia sem direitos das mulheres é algo impossível. Para desmantelar a tirania religiosa e alcançar a democracia verdadeira, os direitos das mulheres devem estar na linha de frente. 

O regime intensificou a perseguição à senhora depois do Nobel da Paz?

Desde que recebi o Prêmio Nobel da Paz, meu telefone ficou desconectado por mais de um ano, e não me permitiram comparecer ao funeral do meu pai. Enfrentei julgamentos e sentenças de prisão adicionais.

Quais são seus planos?

Eu continuarei esta luta ao lado do povo. O caminho à frente é difícil, mas é cheio de esperança e vida. Eu persistirei na resistência e na luta.

Rodrigo Craveiro
postado em 16/01/2025 11:24
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