O diretor de cinema Pablo Larraín parece ter fixação pelas mulheres mais ricas e glamourosas do século 20.
Os dramas baseados na vida real do diretor chileno incluem Jackie (2016), estrelando Natalie Portman como Jacqueline Kennedy Onassis (1929-1994), e Spencer (2021), com Kristen Stewart no papel de Diana, Princesa de Gales (1961-1997).
Em 2024, ele completou a trilogia com o filme Maria (Maria Callas, no Brasil). O longa traz Angelina Jolie interpretando uma das mais famosas sopranos da história da ópera, Maria Callas (1923-1977).
Existe um detalhe em comum entre os filmes Jackie e Maria: o longo relacionamento entre as duas protagonistas e o magnata grego Aristóteles Onassis (1906-1975). Mas, infelizmente, Natalie Portman não faz uma aparição surpresa em Maria, interpretando Jackie O.
E a diferença entre os três filmes de Larraín que, enquanto Jackie e Spencer tinham bem definido o que contar sobre suas heroínas, Maria desenrola sua trama sem determinar muito bem sua mensagem.
Com roteiro de Steven Knight (o mesmo roteirista de Spencer), o filme começa em Paris, no ano de 1977. O corpo de Callas é removido do seu suntuoso apartamento, o que não é o ponto mais original para iniciar um filme biográfico. A narrativa então retorna em uma semana e nos leva para os dias finais da personagem.
Callas já havia deixado de se apresentar há muito tempo e passa o tempo sob o olhar atento do seu mordomo (Pierfrancesco Favino) e da governanta (Alba Rohrwacher). Ambos são muito dedicados a ela, apesar da insistência da cantora em mover seu piano de cauda todos os dias, de um cômodo para outro.
O mordomo é, de longe, o personagem mais tocante do filme. Ele está convencido de que Callas deve procurar um médico para falar de todos os remédios que ela está tomando. Mas a artista tem outros planos.
Callas vai a uma casa de ópera para ver se sua debilitada voz pode ser trazida de volta aos seus tempos de glória. No filme, a voz de Jolie é mixada com gravações originais de Callas.
A cantora tem então uma profunda entrevista programada com uma equipe de televisão. "Essa equipe de televisão é real?", pergunta o mordomo. A resposta é não.
Os membros da equipe são alucinações e Callas sabe disso. Mas ela conversa com suas "visões" sem nenhuma restrição.
A diva passeia por Paris falando com um entrevistador inexistente (Kodi Smit-McPhee). Callas o chama de Mandrax, o nome de um dos comprimidos que ela toma.
A entrevista imaginada é um pretexto arquitetado para que Larraín possa reconstruir episódios do passado de Callas, alguns deles filmados em proporções de tela diferentes e em preto e branco.
Podemos, assim, ver Maria Callas cantando para oficiais nazistas quando era adolescente na Grécia, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). E também observamos a artista roubando a cena ao substituir outra cantora no último minuto em Veneza, em 1949.
Esta sequência relembra a grande oportunidade de Leonard Bernstein (1918-1990) no filme Maestro (2023), de Bradley Cooper. Mas, ao contrário de Cooper, Larraín teve o bom senso de não oferecer um nariz falso à sua estrela.
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Romance com Onassis
A principal preocupação do filme, no entanto, é o romance entre Callas e Onassis (Haluk Bilginer). O relacionamento começa em um coquetel em 1957, quando o magnata da navegação anuncia, a poucos metros de distância do marido dela, que os dois estavam destinados a ficar juntos.
Nos dias que antecedem a sua morte, Callas conta aos seus empregados que o fantasma de Onassis ainda a visita todas as noites. Talvez ela tenha ficado obcecada por ele até o fim.
Mas Maria Callas foi reconhecida pelo seu próprio talento em vida. Por isso, parece um insulto dedicar mais atenção ao seu namorado do que às suas imensas conquistas e conflitos tempestuosos. As cenas com Maria e Ari estão mais próximas de serem novelescas do que de elementos de ópera.
Isso não significa que não sejam cenas envolventes. Knight escreveu incontáveis linhas de um diálogo memorável e espirituosamente perspicaz – muito longe de ser uma simples oportunidade para mostrar um belo ator bem vestido, em locais bonitos de Paris.
Mas Maria não tem senso de urgência. Todos nós sabemos, desde a cena de abertura, que a semana da soprano não irá terminar com um retorno milagroso. Por isso, seus devaneios físicos e mentais não trazem nenhuma tensão ou entusiasmo.
O filme também é carregado de admiração e reverência, para gerar empatia pela sua heroína supostamente frágil.
De forma nada comum para alguém dependente de drogas e doente terminal, a Callas de Jolie está sempre magnífica, sempre soberba e digna, confiante e imperturbável, soltando gracejos para quem quer que cruze seu caminho.
"O que você tomou?", pergunta o mordomo, quando a patroa visita seu armário repleto de remédios. "Tomei liberdades a vida inteira", responde ela, "e o mundo tomou liberdades comigo."
O diálogo improvável sugere que Callas é mais do que um ser humano – é um ícone.
Larraín e sua equipe se recusam a fazer a heroína descer do seu pedestal. Por isso, eles não atribuem a ela nenhuma vulnerabilidade, nem a divertida vivacidade da Maria Callas real que pisca o olho e ri em frente à câmera, durante trechos de filmagens antigas nos créditos finais.
Ao longo de todo o filme, diversas pessoas traçam a distinção entre "Maria", a mulher, e "La Callas", a diva sobre-humana.
E, apesar do título original, Maria certamente é um filme sobre "La Callas".
Ficha técnica
Maria (no Brasil, Maria Callas)
Diretor: Pablo Larraín.
Elenco: Angelina Jolie*, Pierfrancesco Favino, Alba Rohrwacher, Kodi Smit-McPhee e Haluk Bilginer.
Duração: 2h 4min.
Estreia no Brasil: 16 de janeiro de 2025, nos cinemas.
* Angelina Jolie foi indicada para o Globo de Ouro de melhor atriz em filmes dramáticos, ao lado de Kate Winslet (Lee), Nicole Kidman (Babygirl), Pamela Anderson (The Last Showgirl) e Tilda Swinton (O Quarto ao Lado). A vencedora foi Fernanda Torres, por sua atuação em Ainda Estou Aqui.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.