América Latina

Como Venezuela foi do 'socialismo do século 21' ao 'capitalismo autoritário' com Maduro

Nicolás Maduro tomou posse neste 10 de janeiro, dando início a seu terceiro mandato na Venezuela. Após mais de uma década no poder, o modelo econômico que ele implementou no país, inicialmente inspirado em seu antecessor, Hugo Chávez, sofreu mudanças radicais.

Frente a protestos da oposição, Maduro iniciou o terceiro mandato em 10 de janeiro -  (crédito: Getty Images)
Frente a protestos da oposição, Maduro iniciou o terceiro mandato em 10 de janeiro - (crédito: Getty Images)

"Exproprie-se!"

O ex-presidente venezuelano Hugo Chávez (1954-2013) transformou esta ordem em seu grito de guerra. Em 2007, passou a usá-lo para anunciar a estatização de fábricas, bancos, hotéis, empresas de telecomunicações e energia, além de cinco milhões de hectares de terras.

As desapropriações foram um dos pilares de sustentação do novo modelo político, econômico e social promovido pelo mandatário no início dos anos 2000: o chamado socialismo do século 21.

Mas Nicolás Maduro – seu sucessor desde 2013, que se autoproclama "filho de Chávez" e defensor do seu legado – começou, sem muito alarde, a se afastar do projeto econômico do seu mentor nos últimos cinco anos.

Apesar dos questionamentos sobre sua legitimitdade, Maduro tomou posse neste 10 de janeiro. Deixou de lado os enfrentamentos com empresários que marcaram o governo Chávez e o início da sua própria gestão, optando por criar pontes com esse grupo.

"Para que serviu o conflito estéril, a guerra entre nós e não termos nos ouvido? Para o retrocesso e para causar prejuízos [...] Vamos retirar a economia do antagonismo e da guerra política e nos concentrar em trabalhar para produzir", falou o presidente venezuelano aos industriais e pecuaristas do país em julho passado.

A intenção era impedir que os conflitos políticos internos prejudicassem a economia da Venezuela.

Para isso, além das palavras, Maduro tomou medidas concretas. Nos últimos anos, devolveu centros comerciais e fazendas a seus proprietários originais e chegou a abrir a possibilidade de privatizar empresas estatais.

Em novembro, o presidente da Confederação Venezuelana das Indústrias (Conindustria), Luigi Pisella, declarou que o governo planejava transferir para o capital privado 350 empresas desapropriadas pelo Estado nas últimas duas décadas.

Todos estes gestos fazem crer que o país está consolidando um novo modelo, que alguns especialistas definiram como "capitalismo autoritário".

Nicolás Maduro
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Frente a protestos da oposição, Maduro iniciou o terceiro mandato em 10 de janeiro

Permanência da 'elite governante'

Mas o que é o capitalismo autoritário e quais são suas características?

"É um sistema que permite ao capital privado enriquecer, mas, simultaneamente, os direitos sociais, econômicos e políticos dos cidadãos são enfraquecidos para favorecer a permanência das elites governantes no poder", explica à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, o professor de ciência política Antulio Rosales, da Universidade York, no Canadá.

Em termos similares define o cientista político Guillermo Tell Aveledo, decano da Faculdade de Estudos Jurídicos e Políticos da Universidade Metropolitana de Caracas, na Venezuela.

Ele avalia, contudo, que o capitalismo autoritário venezuelano não é convencional.

"A 'abertura' carece de uma racionalidade econômica profunda, enquanto o sistema político permanece fechado e fortemente centralizado", explica ele.

"Este sistema não representa uma ruptura com o socialismo do século 21, mas sim uma adaptação pragmática, que pretende perpetuar o poder sob novas condições."

Nos últimos cinco anos, os venezuelanos observaram como, quase da noite para o dia, desapareceram os controles de preços e divisas vigentes desde 2003. O uso do dólar internamente foi descriminalizado, a economia foi dolarizada de fato, o que reduziu a inflação, e os trâmites de importação de bens foram simplificados.

Estas medidas colocaram fim à angustiante escassez de alimentos e remédios, causada tanto pelas regulamentações de preços, quanto pela má gestão das empresas estatizadas.

Proliferam hoje na Venezuela negócios criados para o consumidor de classe alta, principalmente na capital, Caracas. Estes empreendimentos não existiam no país há apenas cinco ou sete anos.

Mas, ao lado de um boom de consumo e luxo, os preços dos produtos também dispararam e milhões de pessoas mergulharam na pobreza.

Um policial reprimindo uma manifestação
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O mal-estar social ante a histórica crise econômica vivida pelo país forçou as autoridades a abandonar algumas das políticas do socialismo do século 21

O pragmatismo

Os ajustes serviram para que o país saísse da sua histórica hiperinflação, iniciada em 2017, e para que sua economia atingisse 13 trimestres de crescimento consecutivos, segundo dados do Banco Central da Venezuela (BCV).

Para os especialistas consultados, esta mudança não foi produto de uma revisão ideológica, nem de retificações por parte das autoridades. Foi algo forçado pelas circunstâncias.

"A abertura se dá porque a receita do petróleo entra em colapso, devido à combinação da queda dos preços do produto nos mercados internacionais a partir de 2014 e da redução da produção nacional", afirma o economista Francisco Monaldi, professor da Universidade Rice, nos Estados Unidos.

O petróleo é a principal fonte de divisas da Venezuela. O país extraía três milhões de barris diários no início do século, mas a produção caiu para meio milhão em 2020, queda que deixou o Estado sem mais de 90% de sua receita, segundo declarou Maduro no último mês de julho.

Torres de petróleo no estado de Zulia
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Queda da indústria petrolífera venezuelana é uma das principais causas das mudanças econômicas promovidas pelo governo do país, segundo os especialistas

"A falta de receita obrigou as autoridades a recorrerem àqueles que poderiam ter dinheiro e eram tradicionalmente considerados inimigos: os empresários", explica o economista.

Rosales concorda que as mudanças econômicas foram impostas pela crise gerada pelo próprio modelo socialista, mas destaca um fator externo: as sanções impostas por diversos países ao governo de Maduro nos últimos anos por ataques à democracia e violações de direitos humanos.

"O governo teve seus caminhos bloqueados para dar prosseguimento ao socialismo baseado na receita, ou seja, vender petróleo no mercado internacional e redistribuir estes fundos internamente", prossegue Rosales.

"Isso, somado às pressões internas [a insatisfação social e os protestos] causadas pela escassez e pela inflação, forçaram a geração de certas aberturas para manter o poder."

A maior parte das sanções impostas nos últimos anos pelos Estados Unidos, União Europeia, Canadá e outros países foi dirigida a funcionários e ex-funcionários venezuelanos e seus familiares próximos.

Mas algumas dessas medidas tiveram como alvo a companhia estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), o Banco Central do país e outras instâncias governamentais, que tiveram fechadas suas portas para os mercados internacionais tradicionais.

Já Monaldi acredita que as sanções internacionais foram apenas um ingrediente a mais.

"Em 2017, quando foram impostas as sanções financeiras [à PDVSA e ao BCV], a Venezuela estava a ponto de uma moratória financeira generalizada", recorda o economista.

Monaldi defende que a razão fundamental da virada do governo foi a crise econômica "autoinfligida" que surgiu em 2017.

"A hiperinflação leva os governos a serem pragmáticos, incluindo os que são mais de esquerda", segundo ele.

Como prova de suas argumentações, Monaldi menciona duas decisões que, segundo ele, teriam sido impossíveis de se imaginar dois anos atrás.

A primeira foi a aceitação de que a petroleira norte-americana Chevron administrasse sua empresa de capital misto com a PDVSA, o que é proibido pela legislação venezuelana. A segunda foi a concessão da empresa Ferrominera del Orinoco, a maior produtora de ferro do país, à companhia indiana Jindal.

As sanções pessoais também fizeram com que muitos empreendedores milionários investissem em negócios na Venezuela, criando a demanda doméstica por um consumo de alto valor que, até então, podia ser satisfeito no exterior.

Pessoas fazendo fila para comprar comida num supermercado em Caracas
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As medidas liberais do governo de Maduro permitiram solucionar o problema da escassez de alimentos e retirar a Venezuela da hiperinflação

De inimigos a aliados

A mudança de atitude das autoridades em relação aos empresários, particularmente os tradicionais, traz consigo suas condições.

"Os empresários, principalmente os nacionais, sabem que existem regras que eles devem respeitar e uma delas é jogar com o governo", destaca Rosales.

Isso significa que "os empresários não devem se intrometer em política – ou melhor, se forem se intrometer em política, que seja para apoiar as iniciativas do governo, não a oposição, nem outro tipo de dissidência".

"Os empresários sabem que, se cumprirem com este ponto, abrem-se as portas às oportunidades de grandes lucros em certos mercados com enormes distorções", prossegue o professor.

E os fatos confirmam suas palavras. Nos últimos cinco anos, também ocorreu uma mudança de atitude dos empresários em relação ao governo.

No passado recente, as principais associações empresariais haviam formado um bloco para enfrentar o chavismo nas ruas e nas urnas, em conjunto com os sindicatos, partidos políticos de oposição e outras organizações civis. Mas, agora, eles parecem ter se aproximado do governo.

"As relações institucionais entre o Executivo nacional, regional e municipal e todos os setores econômicos estão articuladas e trabalhando em conjunto para solucionar as dificuldades" econômicas enfrentadas pelo país, declarou em um comunicado a Federação de Câmaras e Empresas da Venezuela (Fedeindustria).

No documento, a organização rejeitou a possibilidade de que os Estados Unidos imponham novamente medidas contrárias ao setor petrolífero venezuelano, após as críticas ao governo de Maduro devido às eleições presidenciais de 28 de julho, consideradas não competitivas, nem transparentes.

"O que ocorreu nos últimos anos é muito positivo e foi realizado por um governo sob sanções, com o qual temos profundas diferenças", declarou à BBC News Mundo Ricardo Cussano, ex-presidente da Fedecámaras (Federação Venezuelana de Câmaras de Comércio e Produção), a principal organização empresarial do país. Ele defendeu a nova postura empresarial nos seguintes termos:

"O país precisa estabelecer confiança para atrair investimentos e isso passa por fazer com que os conflitos políticos deixem de existir e se abra um processo de negociação e diálogo verdadeiro, para fazer com que as instituições venezuelanas sejam mais robustas e inclusivas."

Esta premissa de empresários como Cussano foi fortemente criticada pela oposição política venezuelana. Eles receiam que esta aliança prejudique os esforços rumo às mudanças políticas evidenciadas nas eleições de 28 de julho, segundo as atas dos resultados publicadas pela oposição, demonstrando a vitória do candidato de oposição, Edmundo González.

Mão de uma pessoa insere notas de dólar e bolívar em um caixa
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Depois de duas décadas proibindo o uso do dólar, as autoridades venezuelanas deram início à "dolarização informal" da sua economia em 2018

Mais próximo da Rússia que da China

A economia venezuelana "vive uma transição que tem como referência o modelo chinês", declarou, no fim de 2023, Rafael Lacava, governador do Estado venezuelano de Carabobo e membro da direção nacional do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), governista, para explicar as mudanças econômicas produzidas no país.

Mas os especialistas questionam se esta comparação é adequada à realidade venezuelana.

"Esta 'abertura' é caracterizada por uma aparente liberdade de mercado sem concorrência real, pelo predomínio de elites econômicas vinculadas ao governo e pela ausência de planejamento econômico sofisticado", explica o cientista político Guillermo Tell Aveledo, "diferentemente dos modelos vietnamita e chinês, que possuem estruturas abrangentes e elites relativamente sérias".

Monaldi concorda com esta análise. Ele acredita que as autoridades venezuelanas parecem estar copiando o modelo russo, não o chinês.

Para ele, "Maduro segue o modelo imposto por [Vladimir] Putin na Rússia, no qual o Estado mantém intervenção muito significativa, mas existe uma oligarquia de empresários próximos ao regime que detêm enorme influência sobre a economia".

Reforçam esta tese a ascensão do controverso empresário colombiano-venezuelano Alex Saab ao gabinete ministerial de Maduro e as informações da organização Transparência Venezuela, que dão conta de que cerca de 48 empresas estatais já foram entregues a particulares (muitos deles, próximos de altos funcionários do governo).

Nicolás Maduro em evento com Vladimir Putin e Xi Jinping
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O governo da Venezuela afirma que está seguindo o modelo econômico chinês, mas alguns especialistas acreditam que o modelo mais próximo é o russo

Consolidação ou retrocesso?

Começa agora um novo mandato presidencial, novamente marcado pelo conflito político.

Muitos países consideram o candidato de oposição Edmundo González como presidente legítimo, já que ele seria, segundo os resultados publicados, o vencedor das eleições de julho passado. Mas Nicolás Maduro é quem detém o poder.

Neste contexto, surge a pergunta: esse experimento é sustentável a longo prazo? Os especialistas têm opiniões discordantes a este respeito.

"Estas aberturas surgiram por pragmatismo", afirma Antulio Rosales. "Era preciso fazê-lo para manter certa estabilidade e continuar no poder. Mas eu diria que, agora, depois de quatro ou cinco anos, elas são irreversíveis."

Para o professor, os setores que se beneficiaram do novo modelo são uma das razões que irão assegurar sua sobrevivência.

"As bases de sustentação do poder estão, entre outros setores, nos militares, que se beneficiaram economicamente desta mudança, e no setor privado, que foi disciplinado e até se transformou em um novo aliado do regime político", acrescenta.

Já Francisco Monaldi tem suas dúvidas e recorre à história como argumento.

"Para mim, a grande pergunta é: se as sanções forem suspensas e a produção petrolífera for recuperada, Maduro continuará sendo pragmático e liberalizador ou voltará a querer controlar tudo?"

O economista imediatamente recorda que "os cubanos liberalizaram a economia cerca de três ou quatro vezes desde a queda da União Soviética e depois retrocederam, porque eles têm muito receio dos participantes independentes da economia, que não podem controlar. [O presidente chinês] Xi Jinping faz o mesmo atualmente com os ricos".

Por outro lado, os empresários desejam que o novo modelo se consolide. E, com eles como aliados, voluntária ou involuntariamente, Maduro também procura se manter no poder para um terceiro mandato, apesar dos conflitos políticos internos e da sua rejeição internacional.

BBC
Juan Francisco Alonso - Da BBC News Mundo
postado em 10/01/2025 15:41 / atualizado em 10/01/2025 16:30
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