A nova era Trump começa, nesta segunda-feira (6/1), com a certificação do resultado das eleições de 2024 por um Congresso norte-americano com segurança reforçada. Cercas de ferro foram instaladas ao redor do prédio. Há exatamente quatro anos, uma horda de simpatizantes do republicano Donald Trump realizou um ataque sem precedentes ao Estado de Direito, ao invadir o Capitólio e tentar sabotar o reconhecimento da vitória do democrata Joe Biden. O ataque deixou cinco mortos e centenas de feridos, e levou à condenação de 1.600 manifestantes.
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Pouco antes da invasão, Trump incitou os seguidores a invadirem a sede do Legislativo. "Nós vamos deter o roubo. Nunca desistiremos, nunca iremos ceder, isso não ocorrerá", declarou, em 6 de janeiro de 2021, em um discurso no Ellipse, um parque de Washington situado a poucos metros da parte posterior da Casa Branca. "Se vocês não lutarem como o diabo, não terão mais um país."
A duas semanas de tomar posse, o presidente eleito dos EUA pretende anistiar os invasores da sede do Legislativo. Professor de história e política social da Universidade de Harvard, Alexander Keyssar afirmou ao Correio que a reeleição de Trump e o desejo de perdoar os invasores do Capitólio "são um claro sinal de que a democracia está em risco nos Estados Unidos". "O que ocorreu em 6 de janeiro de 2021 foi uma tentativa flagrante de bloquear, ou subverter, o processo democrático. A negação da verdade, por Trump e por aqueles que votaram nele, é uma clara indicação de sua disposição de violar os processos e as normas democráticas", advertiu.
Para Julian Zelizer, historiador político da Universidade de Princeton, o quarto aniversário do ataque ao Congresso ocorre em um "momento dramático". "Trata-se do passo final para algumas pessoas no país, que tentam varrer e apagar os esforços de anular uma eleição presidencial", alertou ao Correio.
Ele critica a disposição de Trump de indultar os invasores do Capitólio. "O perdão encorajará outros simpatizantes de Trump, os quais sentirão que, enquanto ele permanecer no poder, estarão imunes a processos por ações futuras." Questionado pela reportagem sobre as lições extraídas daquele 6 de janeiro de 2021, Zelizer tem uma resposta imediata: "Não superar os momentos políticos traumáticos, mas lidar com eles".
"Maior ameaça"
Por sua vez, John Polga-Hecimovich, professor de ciência política da Academia Naval dos EUA, reconhece que a democracia norte-americana está sob "enorme pressão". "A insurreição de 6 de janeiro marca, provavelmente, a maior ameaça à democracia desde a Guerra Civil. Foi uma expressão de todos os tipos de males que afetam a política dos Estados Unidos: a polarização partidária, o aumento da desinformação política, o enfraquecimento do acesso ao voto para os eleitores em muitos estados, a politização da administração das eleições e a manipulação extrema, apenas para citar alguns", admitiu, por e-mail.
Segundo Polga-Hecimovich, a opinião pública tem refletido esse fenômeno. Ele lembrou que visões positivas de instituições políticas e governamentais amargam baixas históricas, e uma parcela crescente da população não gosta tanto dos republicanos quanto dos democratas. "Em última análise, isso proporciona um contexto propício para a ascensão de um demagogo populista com um fraco compromisso com os princípios democráticos", explicou.
O estudioso da Academia Naval dos EUA acredita que o indulto aos insurrecionistas que invadiram o Capitólio marcaria uma traição ao Estado de Direito. Ele entende que isso forneceria justificativa para aqueles que creem nas falsas alegações de fraude eleitoral nas eleições de 2020, além de estabelecer um precedente perigoso de que apoiadores do presidente possam se comportar sem medo de consequências.
Polga-Hecimovich considera suficientemente ruim o fato de que Trump não tenha enfrentado quaisquer punições pelo envolvimento no que o Comitê da Câmara de Representantes concluiu ser "conspiração multifacetada para anular os resultados legais das eleições presidenciais de 2020". "Perdões às pessoas envolvidas representariam um endosso aos ataques à Constituição dos EUA e à democracia dos EUA."
EU ACHO...
"A reeleição de Trump é um caso de ideologia — ou de compromissos políticos — sobrepujando a verdade para cerca de um terço da população norte-americana, incluindo o partido que agora retorna ao poder (Republicano). Este é um perigo que não irá embora facilmente."
Alexander Keyssar, professor de história e política social da Universidade de Harvard
"O fato de um ex-presidente, envolvido na tentativa de anular a eleição, ter sido reeleito com uma maioria popular oferece uma clara evidência de que os valores democráticos e as instituições estão em perigo."
Julian Emanuel Zelizer, professor de história política da Universidade de Princeton
"Os eventos do 6 de janeiro expuseram as divisões políticas do país. Aquele foi um dia terrível, que nunca devemos deixar acontecer novamente, seja por meio de moderação política ou pelo fortalecimento do Estado de Direito. Mas também sugeriu que a democracia é mais frágil do que a maioria dos americanos pode pensar."
John Polga-Hecimovich, professor de ciência política da AcademiaNaval dos EUA
ENTREVISTA / Nick Quested, documentarista e testemunha do 6 de janeiro de 2021
"Percebi que aquele não seria um dia normal"
Em 6 de janeiro de 2021, o documentarista britânico Nick Quested chegou ao Capitólio pouco antes das 10h30 (12h30 em Brasília). Seu objetivo era filmar os dois extremos da polarização política nos EUA, acompanhando os Proud Boys, uma organização neofascista que apoia Donald Trump. Um ano depois, ele prestou depoimento perante o comitê da Câmara dos Representantes criado para investigar o ataque ao prédio do Congresso. Em entrevista ao Correio, Quested falou sobre o que viu naquela manhã e sobre o futuro da democracia norte-americana.
Quando o senhor chegou ao Capitólio, naquele 6 de janeiro, esperava por uma invasão ao prédio?
Eu não achava que o 6 de janeiro seria algo tão enorme, em termos de uma invasão ao Capitólio, mas pensava que seria grande. Eu imaginei que algo ocorreria. Achei que veríamos uma grande manifestação, seguida por contramanifestações e por algumas lutas. Não achei que atacariam o Capitólio. Eu estive com Stewart Rhodes, líder dos Oath Keepers (outra organização neofascista), e com Enrique Tarrio, líder dos Proud Boys, na noite anterior da invasão.
Mas havia algum sinal de que as pessoas poderiam radicalizar o protesto? Ou as coisas tomaram uma proporção inesperada?
Naquele dia, entrevistei algumas pessoas que me disseram que invadiriam o Capitólio. Essas pessoas falavam sobre isso nas redes sociais, coisas como: "Nós invadiremo o Capitólio f...". Não levei muito a sério.
O que mais lhe impressionou quando a invasão começou?
Quando as barreiras vieram ao chão, vi um mar de gente. Percebi que aquele não seria um dia normal. Eles passaram pelas barreiras, e os Proud Boys começaram a liderar a multidão em direção ao Capitólio. Naquele momento, eu soube que as coisas ficariam ruins.
O Congresso irá certificar a vitória de Trump, que pretende anistiar os invasores do Capitólio. O que pensa sobre isso?
Bem, eu seria muito egoísta se eu disse que estou bastante preocupado, porque eu testemunhei contra eles na Corte. Se houver um perdão por parte de Trump, isso será muito irritante para mim. Há uma questão sobre o que isso significa em termos de respeito pela Constituição. Seria muito problemático ter sido condenado por um júri e obter o perdão, por causa de sentimentos políticos. Acredito que a Justiça potencialmente transformou os Oath Keepers e os Proud Boys em mártires com sentenças tão pesadas.
A democracia nos Estados Unidos está em xeque?
Sim, se Trump fizer o que ele prometeu. Ele afirmou que fechará as fronteiras, minará a Constituição, deportará imigrantes. Isso será o começo do fim da democracia. Acredito que isso não ocorrerá e que o Judiciário o impedirá.
Que lições os EUA extraíram daquele 6 de janeiro?
Acho que aprendemos sobre o poder que as mídias sociais impactam a consciência de todos os norte-americanos. Isso está ocorrendo em âmbito mundial. No Brasil, temos visto como as redes sociais manipulam as pessoas e as encorajam a fazer coisas inconstitucionais. As mídias sociais se tornaram armas. A guerra da informação é a nova batalha das mentes. (RC)