Luto Político

Morre Jimmy Carter aos 100 anos

O presidente dos Estados Unidos mais longevo da história recente do país, conquistou o Prêmio Nobel da Paz após deixar o poder, mas ao longo da sua trajetória contribuiu para consolidar a democracia no mundo

O mundo se despediu ontem de uma das figuras mais emblemáticas da política global. Jimmy Carter, ex-presidente dos Estados Unidos e Prêmio Nobel da Paz, faleceu aos 100 anos na casa onde nasceu, na pequena cidade de Plains, Geórgia, onde recebia cuidados paliativos desde fevereiro de 2023, quando recebeu o diagnóstico de câncer de pele e metástase. Antes dele, o ex-presidente norte-americano mais velho foi George H.W. Bush, que morreu aos 94 anos, em 2018.
Carter, que governou os Estados Unidos entre 1977 e 1981, deixa um legado que transcende a política. Sua atuação foi marcada por diálogo diplomático, compromisso com os direitos humanos e uma trajetória humanitária inigualável. Mais do que um ex-presidente, Carter se consolidou como um símbolo mundial de liderança ética e serviço ao próximo.

Nascido em 1º de outubro de 1924, em Plains, Geórgia, James Earl Carter Jr. cresceu em uma comunidade rural, ajudando sua família nas plantações de amendoim. A rotina simples e os valores aprendidos com os pais moldaram um jovem disciplinado e determinado. Formou-se pela Academia Naval dos Estados Unidos e serviu na Marinha Americana, onde desenvolveu liderança e resiliência.

Em 1971, Carter assumiu o cargo de governador da Geórgia e chamou a atenção nacional ao implementar políticas progressistas, com destaque para iniciativas de integração racial e reformas educacionais. Sua postura firme e transparente o projetou no cenário político americano. Em meio a uma crise de confiança na política americana após o Escândalo Watergate, Carter foi eleito presidente em 1976, com uma mensagem clara: “Nunca mentirei para vocês".

Apesar das conquistas diplomáticas, sua gestão enfrentou crises severas. A Crise dos Reféns no Irã (1979-1981), que manteve 52 diplomatas americanos reféns por 444 dias, abalou sua popularidade. Houve ainda a crise energética e a inflação crescente desgastaram sua imagem, levando à derrota para Ronald Reagan nas eleições de 1980.

Relação com o Brasil 

Na Casa Branca, Carter adotou uma abordagem inovadora e corajosa nas relações exteriores dos Estados Unidos, colocando os direitos humanos no centro de sua política externa. Essa postura teve impactos diretos no Brasil e em outros países da América Latina, então sob regimes autoritários. Os contatos com o Brasil ocorreram durante a ditadura militar (1964-1985). Ele foi responsável por cobrar do governo brasileiro a adoção de práticas mais transparentes e respeitosas aos direitos fundamentais.

Em 1977, durante uma visita de representantes brasileiros a Washington, Carter deixou claro que os Estados Unidos não iriam mais tolerar abusos sistemáticos de direitos humanos. Essa mensagem repercutiu no governo militar brasileiro, gerando desconforto, mas também abrindo espaço para um diálogo mais franco sobre a transição democrática. A política externa de Carter fortaleceu movimentos internos no Brasil que buscavam a redemocratização, dando legitimidade internacional às vozes que pediam mais liberdade e justiça.

Carter negociou diretamente o acordo assinado em 1977, o Tratado Torrijos-Carter, que transferiu gradualmente o controle do canal para o Panamá, simbolizando um compromisso genuíno com a autodeterminação dos povos latino-americanos. Esse ato reforçou a confiança entre os países da região e melhorou significativamente a imagem dos Estados Unidos no hemisfério sul.
 
Em Brasília
 
Em 29 de março de 1978, durante a visita oficial do então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, ao Brasil, estudantes da Universidade de Brasília (UnB) organizaram um ato público marcado por críticas à política externa americana e à repressão promovida pelo regime militar brasileiro. Na reportagem, publicada pelo Correio Braziliense, os estudantes encenaram a peça “A Força do Capitão no Reino da Repressão” e aprovaram uma moção de repúdio à visita de Carter por causa do apoio histórico dos Estados Unidos às ditaduras na América Latina.
 
A morte de Carter foi lamentada por líderes mundiais. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, divulgou comunicado oficial: “Para qualquer pessoa em busca do que significa viver uma vida com propósito e significado — a boa vida — estude Jimmy Carter, um homem de princípios, fé e humildade". 
 
Eleito, o futuro presidente americano Donald Trump, reconheceu a contribuição de Carter para o país, afirmando que os americanos têm “uma dívida de gratidão” com o democrata. “Os desafios que Jimmy enfrentou como presidente ocorreram em um momento crucial para nosso país, e ele fez tudo o que estava ao seu alcance para melhorar a vida de todos os americanos".
 
O ex-presidente George W. Bush destacou a dedicação de Carter ao serviço público. O casal Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos, e Hillary Clinton, ex-secretária de Estado, destacou a amplitude das realizações de Carter ao longo de sua vida pública e pós-presidencial.

O líder egípcio Abdel Fattah Al-Sisi prestou tributo ao papel histórico de Carter na assinatura dos Acordos de Camp David, que estabeleceram a paz entre Egito e Israel: “Seu legado duradouro garante que ele será lembrado como um dos líderes mais proeminentes do mundo a serviço da humanidade.” Chip Carter, filho do ex-presidente, também compartilhou suas emoções em um comunicado: “Meu pai foi um herói, não só para mim, mas para todos que acreditam na paz, nos direitos humanos e no amor altruísta", disse.
 
Itamaraty presta condolências
 
A morte de Jimmy Carter também foi repercutida pelo governo brasileiro por meio do Ministério das Relações Exteriores. Em nota, o Itamaraty prestou condolências à família do ex-presidente norte-americano e enalteceu o legado de Carter no "fortalecimento de instituições democráticas e o respeito aos direitos humanos no mundo".
 
Confira o comunicado completo:

"O governo brasileiro tomou conhecimento, com pesar, do falecimento do ex-Presidente dos Estados Unidos da América, Jimmy Carter, no dia de hoje, 29 de dezembro.

À frente do governo norte-americano entre 1977 e 1981, Carter liderou negociações diplomáticas relevantes, que levaram, por exemplo, aos acordos de paz entre Egito e Israel e a acordo de limitações de armas estratégicas entre os Estados Unidos e a União Soviética.

Após o fim do seu mandato presidencial, o Presidente Carter continuou, através do “Carter Center”, a trabalhar pelo fortalecimento de instituições democráticas e o respeito aos direitos humanos no mundo, esforço que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz em 2002.

O governo brasileiro estende aos familiares do Presidente Carter e ao governo e ao povo norte-americanos as mais sentidas condolências."

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Legado de ações políticas e humanitárias

Em 2002, o ex-presidente Jimmy Carter recebeu o Prêmio Nobel da Paz como reconhecimento dos seus esforços para encontrar soluções pacíficas para conflitos internacionais. Ele fez a mediação em várias situações de tensão política, como negociações de paz no Oriente Médio e na Coreia do Norte, utilizando sua influência para promover a diplomacia e a resolução pacífica de disputas.

Carter enfrentou crises econômicas e diplomáticas, como a Revolução Islâmica no Irã e a invasão do Afeganistão pela União Soviética. Mas ele se destacou ainda mais pelo trabalho humanitário, defesa dos direitos humanos e mediação de conflitos, incluindo o Acordo de Camp David entre Egito e Israel.

Para especialistas, o norte-americano foi guiado pela ética, retidão e integridade, marcas que deixou por onde passou. Sempre sensível, o ex-presidente criou o Carter Center. Por intermédio da fundação, promoveu campanhas para erradicar doenças negligenciadas, como a oncocercose (cegueira provocada por picada de insetos) e a filariose linfática, popularmente conhecida como elefantíase. 


Carter se empenhou ainda pelo combate de doenças, como a dracunculíase (verme da Guiné) e na supervisão de eleições em países em desenvolvimento.

Não satisfeito em promover ações globais, o ex-presidente e sua mulher, Rosalynn, foram voluntários ativos na Habitat for Humanity. A organização constrói e reforma casas para famílias de baixa renda. (VO e RG)

A simplicidade de um democrata e pacifista

Diplomatas e políticos lamentaram a morte de Jmmy Carter, ex-presidente dos Estados Unidos, aos 100 anos. Para os negociadores acostumados com as articulações internacionais, ele será lebrado por suas qualidades de estadista, como a defesa pela democracia e a paz. Eles lembraram que, no comando da Casa Branca de 1977 a 1981, foi um grande crítico das ditaduras latino-americanas, inclusive, a do Brasil.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usou as redes sociais para se manifestar.  “Acima de tudo, (era) um amante da democracia e defensor da paz”. “No fim dos anos 1970, pressionou a ditadura brasileira pela libertação de presos políticos. Depois, como ex-presidente, continuou militando pela promoção dos direitos humanos, pela paz e pela erradicação de doenças na África e na América Latina”, escreveu. 

“Carter conseguiu a façanha de ter um trabalho como ex-presidente, ao longo de décadas, tão ou mais importante que o seu mandato na Casa Branca, criticou ações militares unilaterais de superpotências e o uso de drones assassinos”, afirmou. Lula ainda lembrou que o norte-americano trabalhou ao lado de representantes do Brasil na mediação de conflitos na Venezuela e na ajuda ao Haiti. 

Rubens Ricupero, diplomata ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, destacou que Carter introduziu a questão dos direitos humanos no centro da agenda política internacional. Segundo ele, o ex-presidente jamais perdeu a simplicidade, participando da escola dominical da Igreja Batista.

“Ele colocou a União Soviética na defensiva, abrindo caminho para os acordos de Helsinque cujas implicações de médio prazo conduziram gradualmente a volta da democracia aos antigos países comunistas. Carter aplicou uma pressão eficaz contra as ditaduras latino-americanas dos anos 1970”, afirmou, em entrevista ao Correio.

Para Ricupero, Carter deixou um extenso legado, sobretudo pelo acordo de paz entre Egito e Israel, o principal até hoje no Oriente Médio. Além disso, o diplomata destacou o acordo de devolução do Canal ao Panamá, “ora ameaçado pelo presidente eleito dos EUA Donald Trump”; e a adoção de postura de aceitação das mudanças na América Central como a queda da ditadura de Anastasio Somoza, na Nicarágua.

“Ao deixar a presidência, Carter realizou uma obra incansável na promoção da paz, de eleições limpas e democráticas, dos direitos humanos, que lhe valeram o Prêmio Nobel da Paz e a descrição como o ‘melhor ex-presidente dos Estados Unidos’”, destacou Ricupero. “Por todas essas razões foi sempre unanimemente respeitado pelos cidadãos norte-americanos.”

O ex-embaixador do Brasil em Washington e CEO do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), Rubens Barbosa, reiterou a simplicidade de Carter, que assinou o acordo de Camp David que previa a paz entre o Egito e Israel. “Foi um defensor dos direitos humanos, muito crítico do governo Ernesto Geisel nessa questão. Depois da presidência, atuou no Carter Center na defesa da democracia, dos direitos humanos e da transparência das eleições, inclusive nos países sul americanos”, afirmou Barbosa ao Correio.

O ex-governador e ex-senador Cristovam Buarque contou ter conhecido Carter em um jantar na embaixada dos EUA em Brasília. “Lembramos a carta enviada a ele por estudantes da UnB, denunciando a violência da ditadura, colocada emoldurada em uma parede do Centro Carter, em Atlanta. Jimmy Carter foi um raro estadista que seguia ética antes da politica”, afirmou.