DÓLAR

Disparada do dólar é sinal que Lula perdeu a mão na economia?

Analistas veem erro do governo no cronograma escolhido para ajuste fiscal e avaliam como cenário pode impactar corrida eleitoral de 2026

Os patamares recordes alcançados pelo dólar em dezembro, chegando a vater mais de R$ 6,30, trouxeram um clima amargo para o fechamento da primeira metade do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

A forte desvalorização do real acabou ofuscando bons resultados de 2024, como o crescimento econômico acima do esperado, a baixa taxa de desemprego e a aprovação da regulamentação da reforme tributária.

Por outro lado, a disparada da moeda americana jogou mais luz sobre a crise fiscal: a dificuldade do governo em equilibrar as contas públicas e controlar seu endividamento, fatores que tendem a alimentar a inflação e manter os juros altos no país.

Segundo analistas ouvidos pela BBC News Brasil, os fundamentos econômicos do país não apontam para um dólar acima de R$ 6.

Para eles, o enfraquecimento da moeda brasileira reflete a saída de investidores do Brasil devido ao aumento da percepção de risco sobre a capacidade do governo de honrar suas dívidas no futuro.

Segundo projeções do mercado financeiros colhidas semanalmente pelo Banco Central, a previsão é que a dívida líquida do setor público suba de cerca de 63% do PIB neste ano para 74% do PIB em 2027.

O novo cenário tem sido fortemente explorado pela oposição.

"Dólar fecha o dia em cotação de valor recorde de R$ 6,26. A política econômica de Lula 3 segue os passos do governo Dilma. Vão quebrar o país. Precisamos agir", escreveu em suas redes sociais a senadora Damares Alves (Republicanos/DF), na semana passada.

Os economistas entrevistados reconhecem que o desafio fiscal é complexo e anterior à atual gestão, mas dizem que Lula tomou decisões erradas na administração das contas públicas que deixam o governo em situação desconfortável para os dois próximos anos.

Para Nelson Marconi, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Eaesp), um dos erros foi deixar de realizar o ajuste fiscal no início do governo, para colher depois os efeitos positivos das contas equilibradas, como feito na primeira gestão Lula (2003 a 2006).

Ao invés disso, ressalta, foi apresentado apenas agora um pacote de corte de gastos, que acabou repercutindo mal devido ao anúncio simultâneo do aumento da isenção de Imposto de Renda para ganhos mensais de até R$ 5 mil.

"Fizeram um anúncio completamente errado desse pacote fiscal. Estava todo mundo esperando um pacote de contenção de gastos e o governo vem anunciar uma isenção de impostos", reforça.

Na visão de Claudia Moreno, economista do C6 Bank, o cenário ficou mais difícil para o governo porque a demora em adotar medidas de contenção de gastos aumentou o custo de um ajuste fiscal agora, após a disparada do dólar.

"O câmbio nesse patamar mais alto atrapalha o trabalho do Banco Central [de conter a inflação] e vai demandar juros mais altos", afirma.

"Com isso, você também tem uma dinâmica da dívida pior [pois juros mais altos impactam na correção da dívida]. Então, querendo ou não, o ajuste fiscal necessário acaba sendo maior do que era antes, num patamar de juros mais baixo", ressalta.

Para o cientista político Creomar de Souza, fundador da consultoria política Dharma, o governo Lula perdeu tempo ao não implementar mais cedo um ajuste nas contas públicas — e talvez agora esteja tarde para reverter isso.

"O cenário hoje me parece muito complexo. Do ponto de vista político, 2025 era a hora de pôr o pé no freio e fazer um exercício muito robusto de contenção, para que, no fim de 2025, o governo tivesse um arranjo em que pudesse fazer um exercício muito robusto de expansão em 2026", afirma.

"Vamos lembrar que Bolsonaro jogou um caminhão de dinheiro no último ano de governo. Mas, do jeito que a coisa vai, talvez o governo Lula não tenha essa possibilidade", compara.

O "caminhão de dinheiro" citado por Souza foi a chamada PEC das bondades, uma alteração da Constituição aprovada pelo Congresso que permitiu ao governo de Jair Bolsonaro elevar as despesas em 2022 em R$ 41 bilhões com benefícios sociais, driblando restrições eleitorais. Em agosto desse ano, o Supremo Tribunal Federal considerou essa PEC inconstitucional.

"Talvez o Lula não consiga expandir os gastos em 2026 porque tem tanto mau humor [de alguns setores com o governo], tanta irritabilidade, que em parte é derivada desse processo de polarização que a gente vive, mas tem também o fato de que o governo dá motivo. E esse parece ser um elemento chave pra gente entender esse fim de ano", analisa Souza.

Reuters
Alta do dólar virou munição da oposição contra Lula

Como Lula iniciou governo ampliando gastos

Após Bolsonaro encerrar seu governo com a PEC das Bondades, Lula começou o seu com a PEC da Transição, que permitiu subir as despesas acima do antigo teto de gastos em R$ 145 bilhões, com objetivo de ampliar o valor do Bolsa Família e retomar políticas públicas que tiveram despesas contidas na gestão anterior, como o programa Farmácia Popular.

Além disso, a PEC deu espaço para Lula retomar a política de correção do salário mínimo acima da inflação, após anos de reajuste real zero.

O ganho real do mínimo é considerado fundamental pela gestão petista para melhorar a renda dos mais pobres. A medida, porém, tem forte impacto nas contas públicas, já que despesas relevantes como aposentadorias do INSS e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) são atrelados ao mínimo.

Para Claudia Moreno, do C6 Bank, esse foi um dos erros do governo que contribuíram para a perda de confiança na política fiscal nesses dois primeiros anos.

Uma das medidas do novo pacote fiscal da Fazenda foi justamente conter o reajuste do mínimo.

Segundo as novas regras aprovadas no Congresso, ele vai continuar sendo reajustado acima da inflação, mas o ganho real não poderá mais passar de 2,5%, que é o limite geral para aumento de despesas estabelecido pelo Arcabouço Fiscal (regra que substituiu o Teto de Gastos, adotado no governo Michel Temer).

A mudança foi avaliada positiva por economistas preocupados com o equilíbrio das contas públicas, mas, ainda assim, foi considerada insuficiente.

Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), ressalta que despesas atreladas ao mínimo não crescem apenas pelo reajuste do seu valor, mas também pelo aumento do número de benefícios, devido ao envelhecimento da população.

Por isso, mesmo com o teto de 2,5% de ganho real, essas despesas vão continuar subindo mais rapidamente que outros gastos, pressionando o endividamento público.

Os argumentos de Fernando Haddad

EPA-EFE/REX/Shutterstock
Haddad diz que governo estaria com contas equilibradas se Congresso aprovasse fim de benefícios tributários

Os economistas entrevistados concordam que uma medida importante para equilibrar as contas públicas é rever os benefícios tributários (descontos de impostos para alguns setores), algo que vem sendo defendido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mas enfrenta resistências no Congresso Nacional.

Segundo estimativa da Receita Federal, essa renúncia fiscal vai somar R$ 544 bilhões, em 2025, o equivalente a 4,4% do Produto Interno Bruto e cerca de um quinto das receitas administradas pela Receita.

Na sexta-feira 20/12, em café da manhã com jornalistas, Haddad afirmou que a União fecharia 2024 com saldo positivo nas contas se o Congresso tivesse aprovado a proposta do governo de rever alguns desses benefícios, evitando uma perda de R$ 45 bilhões em arrecadação.

Desse total, cerca de R$ 20 bilhões correspondem à desoneração da folha de pagamentos para alguns setores econômicos, outros R$ 15 bilhões vêm do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) e mais R$ 10 bilhões da redução da contribuição à Previdência Social por pequenos municípios.

"Temos de olhar para o gasto tributário. São benefícios indevidos, espúrios, muitas vezes. Por que se dá tanto valor à correção do gasto primário e não à correção do gasto tributário?", questionou o ministro na conversa com a imprensa.

Ao defender a política fiscal do governo, Haddad também argumentou que parte da alta dos gastos na gestão Lula foram medidas para corrigir "maquiagem contábil" do governo anterior, como o adiamento no pagamento de precatórios (dívidas da União já reconhecidas na Justiça) e a compensação a Estados pelas perdas da redução do ICMS sobre combustíveis em 2022.

"O superávit de 2022 [último ano do governo Bolsonaro] não foi consistente. Foi fake [falso], fruto de calote, de privatizações açodadas, de dividendos extraordinários, de maquiagem contábil", criticou.

Questionado sobre a necessidade de mais medidas para conter as despesas em 2025, o ministro afirmou que a revisão de gastos será uma constante no governo, mas não detalhou o que está no radar para o próximo ano.

Haddad também não quis falar em uma meta para o dólar, mas disse que cabe ao Banco Central atuar para evitar disfuncionalidades. A autoridade monetária injetou quase US$ 17 bilhões no mercado à vista, num intervalo de dez dias em dezembro, para tentar conter a disparada da moeda.

O ministro reconheceu que a moeda americana tem ganhado força no mundo, mas teve valorização mais intensa no Brasil, refletindo fatores domésticos.

"Temos de corrigir essa 'escorregada' do dólar aqui. Não no sentido de buscar um nível de dólar, de mirar uma meta. O nível que o BC deveria atuar é buscar o equilíbrio", disse ainda.

Os analistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a crise fiscal de hoje não reflete apenas decisões do governo atual e apontam também a responsabilidade dos outros Poderes.

O Judiciário tem sido cobrado a reduzir os supersalários, com valores acima do teto do funcionalismo público (R$ 44 mil), mas as categorias resistem a mudanças.

E o Congresso Nacional, pressionado por lobbies setoriais, resiste em cortar benefícios tributários, ao mesmo tempo que atua para ampliar cada vez mais o valor das emendas parlamentares (recursos que deputados e senadores podem direcionar para obras e programas em seus redutos eleitorais).

"Para o Congresso, o problema [fiscal] nem existe porque o problema do Congresso está resolvido. E qual é o problema do Congresso? É ter fundo partidário, fundo eleitoral e emenda orçamentária", afirma Creomar de Souza.

"Há um desarranjo institucional que vai criando uma conjuntura que é muito desfavorável ao governo Lula", acrescenta.

Os impactos para 2026

Apesar de apontar um cenário difícil para o governo, Souza diz que isso ainda não "altera o prognóstico de reeleição, porque o Lula é um fenômeno diferente no governo Lula".

Para Marconi, o que será mais importante para a força eleitoral de Lula são as taxas de desemprego e inflação. Suas chances de reeleição, ressalta, vão depender de como a alta do dólar e dos juros vão impactar esses dois fatores que impactam mais diretamente a vida das pessoas.

No momento, o Banco Central está elevando fortemente a taxa básica de juros (Selic), para trazer a inflação, hoje acumulada em 4,87%, para dentro da meta — atualmente em 3% ao ano, com intervalo de tolerância até 4,5%.

A Selic chegou a 12,25% no início de dezembro, e deve chegar até 14,25% em março, segundo sinalização do Banco Central.

Para Marconi, a meta atual de inflação está muito baixa e acaba obrigando o BC a subir demais os juros. Ele ressalta que isso é um problema também para a política fiscal, já que parte da dívida pública está atrelada à Selic.

"O governo tem uma meta de inflação inexequível. O BC pratica juros altos para tentar alcançar essa meta e isso inibe a atividade econômica. Do outro lado, o governo gasta mais para tentar compensar isso. Então, fica uma política absolutamente contraditória", critica.

"E aí esse aumento dos gastos públicos pressiona a dívida. E o próprio aumento dos juros também pressiona o gasto com juros da dívida. O mercado financeiro olha para isso e pensa, 'bom, a dívida vai subir, o risco vai subir'. O resultado é que começa a movimentação de moeda para o exterior e o dólar sobe", continua.

Marconi não é o único que tem criticado essa dinâmica, mas a alteração da meta não é consenso entre economistas.

Questionado por jornalistas na semana passada, Haddad afirmou que o governo não tem intenção de mudar a meta de inflação no momento.

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