Charlie Brown – a imortal criação de Charles M. Schulz (1922-2000) – pode ter sido um dos personagens mais populares da história. Mas o cartunista era modesto em relação ao escopo das suas pequenas parábolas.
"Eu abordo apenas os pequenos problemas da vida diária. Liev Tolstoi (1828-1910) lidava com os grandes problemas do mundo. Eu só falo por que todos nós temos a sensação de que as pessoas não gostam de nós", declarou ele em 1977, em entrevista à BBC.
Mas isso não significa que ele sentisse que estava abordando apenas assuntos triviais.
"Sempre fico muito ofendido quando alguém me pergunta 'Você já fez humor sobre condições sociais?'", prossegue Schulz.
"Bem, eu faço isso quase todo dia. E eles dizem 'Bem, você já tratou de assuntos políticos?' Eu respondo 'Faço coisas mais importantes do que a política. Estou tratando do amor, ódio, desconfiança, medo e insegurança.'"
Charlie Brown pode ter representado o eterno fracasso, mas os sentimentos universais canalizados por Schulz ajudaram a fazer de Peanuts (também publicada como Minduim, no Brasil) um sucesso global.
Schulz nasceu em 1922. Ele próprio desenhou todas as tiras de Charlie Brown, de 1950 até sua morte, em fevereiro de 2000.
Sua criação ficou tão popular que a Nasa batizou dois módulos da missão lunar Apollo 10, em maio de 1969, de Charlie Brown e Snoopy.
Mais de 2,6 mil jornais de todo o mundo publicaram as tiras de Schulz. Elas inspiraram filmes, músicas e incontáveis produtos de merchandising.
Para o escritor Umberto Eco (1932-2016), as tiras de Charlie Brown tiveram sucesso, em parte, porque elas funcionavam em diferentes níveis.
"Peanuts encanta crianças e adultos sofisticados com a mesma intensidade, como se cada leitor encontrasse ali algo para si próprio. E é sempre a mesma coisa, apreciada em dois tons diferentes", escreveu Eco. "Por isso, Peanuts é uma pequena comédia humana para o leitor inocente e para o sofisticado."
O motivo inicial que levou Schulz a se concentrar nas crianças foi rigorosamente comercial. Em 1990, ele declarou à BBC:
"Sempre odeio dizer isso, mas eu desenhei aquelas crianças porque era o que vendia. Eu queria desenhar algo, não sabia o quê, mas simplesmente parecia que, sempre que eu desenhava crianças, era delas que os editores pareciam gostar mais."
"Por isso, em 1950, eu mandei pelo correio um conjunto de desenhos para Nova York [EUA], para a United Features Syndicate", ele conta. "Eles disseram que gostaram e, desde então, estou desenhando crianças."
Sobre Snoopy e Charlie Brown, ele disse:
"Sempre fiquei um pouco intrigado pelo fato de que os cães aparentemente toleram as ações das crianças com quem eles brincam. É quase como se os cães fossem mais inteligentes do que as crianças."
"Também acho que os meus personagens servem de bons veículos para qualquer ideia que eu possa criar", contou ele. "Nunca penso em uma ideia para depois concluir que não tenho forma de usá-la. Posso usar qualquer ideia em que pensar porque tenho a companhia teatral certa."
Schulz se inspirou em algumas das suas primeiras experiências de vida como uma criança tímida para criar a tira.
Quando era adolescente, ele fez um curso de desenho por correspondência, já que era reticente demais para comparecer pessoalmente à escola de arte.
"Eu não conseguia me ver sentado em uma sala, onde todos os demais sabiam desenhar muito melhor do que eu", contou ele em 1977.
"Por isso, eu ficava protegido desenhando em casa e simplesmente mandava meus desenhos pelo correio, para serem analisados. Eu queria ter tido melhor formação, mas acho que todo esse meu histórico me deixou bem preparado para o que eu faço."
"Se eu pudesse escrever melhor, talvez tivesse tentado ser romancista e poderia ter sido um fracasso", prossegue Schulz. "Se eu soubesse desenhar melhor, poderia ter tentado me tornar ilustrador ou artista e teria fracassado ali, mas todo o meu ser parece ter se adaptado para que eu fosse cartunista."
Nunca desista
Peanuts foi claramente consistente ao longo do tempo, apesar do seu cronograma de publicação implacável. Schulz não permitia que as expectativas dos seus milhões de admiradores se tornassem uma distração.
"Você meio que precisa se inclinar sobre a mesa de desenho, silenciar o mundo e simplesmente desenhar algo que você espera que seja engraçado", explica ele.
"O cartunismo ainda é questão de desenhar cenas engraçadas, sejam elas pequenas bobagens ou desenhos políticos significativos. Mas ainda é sobre desenhar algo engraçado – e é tudo o que você deve ter em mente naquele momento: manter uma espécie de sentimento leve."
"Imagino que, quando um compositor está compondo, a música venha mais rápido que ele possa imaginar. E, quando tenho uma boa ideia, dificilmente consigo escrever as palavras com rapidez suficiente."
"Fico com medo de perdê-las antes de colocá-las no papel. Às vezes, minha mão literalmente se agita de entusiasmo enquanto desenho, porque estou me divertindo. Infelizmente, isso não acontece todos os dias."
Mesmo com a sua modéstia, Schulz insistia que sempre acreditou que Peanuts seria um sucesso.
"Quando você se inscreve para jogar em Wimbledon, você espera ganhar", exemplifica ele. "É claro que aconteceram muitas coisas que eu não previa, como Snoopy indo para a Lua e coisas do tipo, mas sempre tive esperança de que seria algo grande."
Schulz geralmente trabalhava com cinco semanas de antecedência. Em 14 de dezembro de 1999, seus admiradores ficaram desolados quando souberam que ele iria deixar de desenhar porque estava com câncer.
Ele anunciou que a tira de 3 de janeiro de 2000 seria sua última publicação diária, que seria seguida em 13 de fevereiro pela tira final para os jornais de domingo.
Schulz morreu um dia antes da publicação da tira final. Nela, ele escreveu:
"Ao longo dos anos, fiquei muito agradecido pela lealdade dos nossos editores e pelo maravilhoso apoio e amor manifestado pelos fãs da tira. Charlie Brown, Snoopy, Linus, Lucy... como eu poderia esquecê-los..."
De volta a 1977, Schulz insistiu que o papel do cartunista é principalmente de indicar os problemas, não de tentar resolvê-los. Mas que havia uma lição que as pessoas podiam aprender com seu trabalho.
"Imagino que uma das soluções é, como Charlie Brown, simplesmente continuar tentando. Ele nunca desiste. E se alguém deveria desistir, seria ele."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês), com o vídeo da entrevista de Charles M. Schulz à BBC em 1977, no site BBC Culture.