infância

'As pessoas precisam aprender a conviver com crianças em público, e elas choram'

Para psicanalista, situação é um sinal de um desconhecimento sobre o que é a disciplina positiva e a educação não violenta.

Em um voo, uma mãe acusa uma passageira de falta de empatia por não trocar de lugar com o filho dela, que estava chorando.

A cena é gravada, o vídeo cai nas redes sociais e é exaustivamente repostado, comentado, vira assunto de colunas de opinião e de teorias sobre a permissividade na criação de crianças e sobre os males da disciplina positiva e de outras abordagens que defendem uma educação respeitosa.

A polêmica do momento é, para a psicanalista Thaís Basile, sinal de um desconhecimento sobre o que é a disciplina positiva e a educação não violenta. Autora de livros sobre infância e parentalidade e com mais de 500 mil seguidores nas redes sociais, Basile acredita que a falta de referências sobre respeito à infância gera esse tipo de confusão.

"Temos tão pouca experiência com o que é respeitar uma criança que logo encaixamos isso que aconteceu no avião dentro da educação respeitosa. Mas não: a estratégia escolhida para acalmar aquela criança foi permissiva, negligente. O que foi ensinado ali é que é aceitável ser invasivo com o outro", diz.

Em sua opinião, porém, a atitude condenável de pressionar e expor a passageira não deve ser uma desculpa para defender uma educação autoritária. "Isso não dá o direito de a gente ser violento com crianças como um todo, de dizer: 'olha, as crianças estão mesmo precisando de palmadas, de grito'. Existe um meio-termo aí."

A busca por esse meio-termo na criação da filha, Lorena, foi o que motivou Basile a ir atrás de informações sobre educação com respeito. Quando virou mãe, 11 anos atrás, ela se surpreendeu com a própria agressividade ao lidar com a menina. "Eu a tratava de uma maneira que eu não queria tratar. As coisas que eu falava para ela saiam da minha boca e eu falava: 'gente, mas por que eu estou fazendo isso se eu nem acredito que violência educa?'", conta.

Em suas pesquisas e nas sessões de psicanálise, percebeu que sua criação tinha sido problemática e que estava descontando na filha, inconscientemente, a raiva que ficou reprimida durante a infância.

Basile, que trabalhava com marketing em uma multinacional, começou a postar suas reflexões nas redes sociais e, em poucos meses, chegou a 100 mil seguidores. Cansada do mercado corporativo, decidiu mudar de carreira, obteve a certificação em disciplina positiva por uma instituição americana e se formou em psicanálise.

Com o tempo, incorporou a seu conteúdo discussões mais coletivas do que individuais, com questionamentos às expectativas sociais sobre maternidade e família e uma visão feminista que leva em conta não só o bem-estar da criança, mas também da mãe.

Basile também critica a idealização de parentalidade estimulada por alguns perfis de educação parental nas redes e enfatiza a necessidade de os pais olharem para as feridas emocionais que trazem da infância — tema que aborda em seus livros "Nossa infância, nossos filhos" (Matrescência, 2020) e "Atravessando o deserto emocional" (Paidós, 2024).

Confira os principais trechos da entrevista:

Divulgação

BBC: O que você pensa sobre o vídeo, que viralizou, da passageira de um voo sendo acusada de falta de empatia por não ter trocado de lugar com uma criança que estava chorando? Acha que algum dos lados está certo?

Basile: A gente tem que falar desse assunto com a seriedade que ele merece e ir além da escolha de lados. Se, por um lado, é uma violência filmar alguém sem consentimento, expor, acusar, eu fico também imaginando o nível de sobrecarga e exaustão que uma mãe pode estar sentindo para chegar ao absurdo de exigir que alguém ajude essa criança a parar de chorar dessa maneira.

Temos tão pouca experiência com o que é respeitar uma criança, porque em geral também não fomos respeitados, que logo encaixamos isso que aconteceu no avião dentro da educação respeitosa. Mas não: a estratégia escolhida para acalmar aquela criança foi permissiva, negligente. O que foi ensinado ali é que é aceitável ser invasivo com o outro. Aquela criança não foi acalmada de uma maneira que ensine que está tudo bem não ter tudo, ficar triste.

Agora: isso não dá o direito de a gente ser violento com crianças como um todo, de dizer: 'olha, as crianças estão mesmo precisando de palmadas, de grito'. Existe um meio-termo aí.

BBC News Brasil: Existe uma crença de que criar filhos é algo intuitivo. Você acha necessário que pais e mães tenham educação parental?

Thaís Basile: Eu acho importante que haja informação, principalmente gratuita, em forma de políticas públicas, de campanhas. Precisamos de informações sobre o que é a infância, o que esperar da infância, porque a gente vê pais e mães esperando que crianças nunca façam birras, nunca chorem, nunca queiram dormir junto, e aí eles podem ir para um lado muito autoritário: não pega no colo, bate, dá castigo.

É aquela ideia de que é preciso trazer o mal do mundo para dentro de casa para acostumar a criança com o mal do mundo. Mas aí você quebra a criança, deixa ela mais desamparada, porque ela internaliza um mundo deletério, que não é seguro. Essa criança vai ter mais chance de ter transtornos emocionais, de não ter um bom relacionamento com os pais no futuro, de ter questões com agressividade.

Então, é preciso falar de infância e de violência contra a infância, mas de uma forma mais generalista.

BBC: Que abordagem você acha negativa na educação parental?

Basile: Discordo da educação parental que transforma a própria vida no espelho, em uma ideia de 'faça o que eu estou fazendo da minha maternidade'. Nenhuma maternidade e nenhuma paternidade é igual. Nossos valores têm que ser muito próprios, e a autonomia e a confiança que a gente ganha na maternidade e na paternidade precisam ser uma conquista própria, não de alguém que está dizendo lá de fora: a regra é essa.

Tem crianças que vão precisar de um pouco mais de firmeza e de direcionamento, outras não. Se a gente colocar uma regra para todo mundo, a gente perde a nuance, e é a nuance que separa eu de você, é a nossa subjetividade.

Todo mundo que apoia pais e mães tem que fazer isso de um lugar de muita humildade, de criar confiança para que eles façam e banquem as próprias escolhas com os filhos — sem cair no lado da violência física ou psicológica, do desrespeito, nem no outro lado, que é a permissividade e a superproteção.

BBC: Muita gente critica os pais de hoje como permissivos e a nova geração de crianças como mimadas. Tem algo de verdade nisso?

Basile: Tem dois lados. Muitos pais e mães não sabem ser autoridade. Para muitas crianças dessa geração, realmente faltam os limites, os 'não podes' — e não de maneira violenta, mas limites firmes, calorosos, éticos. Fomos do 'nada é desrespeito' para 'tudo é desrespeito', e isso também é muito ruim.

Mas tem também as pessoas vendo o respeito como algo errado. Porque antes os adultos podiam humilhar crianças, passar por cima delas, usá-las para seu divertimento. Então, a criança que se impõe, que fala: 'isso aqui eu não vou aceitar', é vista como mimada, "Nutella", "mimizenta".

BBC: A hierarquia entre pais e filhos é necessária?

Basile: A hierarquia é natural. Você decide onde a criança estuda, onde mora, o que ela vai comer, ou seja, essa autoridade está posta. E a criança precisa que o pai e a mãe sejam os comandantes do barco. Ela precisa de estrutura, de sentir que tem gente no comando.

Agora: como vai ser esse comando? Vai ser autoritário, violento, apagando a criança, sem respeito pela pessoa dela? Aí é outra coisa, é quase uma ditadura. Esse barco pode ser muito bem guiado, com boas relações, com muita conexão, mas ainda assim, com hierarquia.

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"A hierarquia é natural. Você decide onde a criança estuda, onde mora, o que ela vai comer", diz psicanalista

BBC: A ideia de que nunca se pode perder a paciência, de que tudo o que você fizer vai ter um efeito terrível sobre o seu filho, vem de alguma abordagem de educação respeitosa?

Basile: Não é a teoria em si, é como as pessoas estão repassando essas informações nas redes sociais. A educação parental é um mercado, a luta por engajamento é real e os vídeos que mais tomam as mães de culpa, vergonha e medo são os que geram mais engajamento.

É importante que a gente fale sobre isso porque, da maneira que está sendo feito, as mães têm vindo a público falar: eu não aguento mais, estou em depressão, em burnout.

Essa pressão por uma maternidade ideal, de seguir aquele combo perfeito de escola Montessori, introdução alimentar sem colher, só com a mãozinha, isso nos exaure. Não estou criticando as teorias, mas a idealização dessas teorias, o quanto a gente não pode ser humana e atuar de acordo com o nosso contexto social.

A gente precisa pensar: qual é o meu possível? Se zero telas até os três anos não vai ser possível, o que eu posso fazer que permaneça dentro dos meus valores? Isso é muito mais próximo de uma conexão real com a criança, porque não perco a conexão comigo, não me martirizo — que é o que ensinam para as mulheres.

BBC: É por isso que as mães estão tão exaustas?

Basile: Tem uma série de fatores. Um deles diz respeito aos homens: as mulheres ganharam papeis, mas os homens não pegaram papeis. Elas são provedoras, mas eles não estão adentrando na mesma velocidade nas tarefas de cuidados.

Muitos pais recorrem a uma performance de incompetência: 'ah, mas é só com você que essa criança se acalma', 'é só com você que ela come'. E aí eles perdem por não ficar com o próprio filho, não acompanhar o crescimento de uma criança, que é uma coisa mágica, bonita demais, mas eles têm o ganho de poder continuar com seus hobbies, com sua vida de antes.

BBC: Isso não está mudando, ainda que aos poucos?

Basile: Esse movimento está acontecendo, mas parece que, estruturalmente, chegamos em um impasse. Os dados do IBGE mostram que o número de horas dedicadas ao trabalho doméstico pelos homens cresceu um pouco por um tempo, mas depois estagnou. É como se eles falassem: até aqui eu vou, mais do que isso eu não vou. Não vou perder a cervejinha, o futebol, o estudo, as horas extras que eu quiser fazer no trabalho. E aí é a mãe que tem que se virar. E é claro que sobra muito mais para as mães negras, periféricas, que já estão vulnerabilizadas.

BBC: O autocuidado é visto como antídoto para a exaustão feminina. Por que você tem uma visão crítica sobre esse termo?

Basile: O autocuidado está sendo vendido para as mulheres como auto-indulgência, que é o mercado da beleza e do bem-estar, ou como apaziguamento da raiva, que é dizer que se você não tem quem te cuide, você tem que se cuidar. Então as mulheres precisam fazer tudo por todo mundo e, sem receber o cuidado de ninguém, também se cuidar? O cuidado é uma via de mão dupla, ele tem que ser recíproco, tem que ser uma cadeia: alguém cuida de mim e eu cuido do outro.

Não é uma unha, um cabelo feito, que vai fazer você se sentir mais tranquila ou cuidada. Não é um 'banho premium', um skincare com 25 produtos, essas trends eternas, como se a gente precisasse se consertar o tempo todo. O que elas vão fazer, muitas vezes, é nos deixar alienadas da nossa condição social neste país, neste mundo, porque estamos muito preocupadas tentando ficar bonitas, magras.

BBC: Nas redes sociais, existe o fenômeno das 'trad wives' e das 'esposas troféu', que vivem em função do lar e defendem esse estilo de vida. Isso pode ser uma reação à sobrecarga das mulheres nas duplas e triplas jornadas?

Basile: Realmente, se a gente pensar na matemática da coisa, parece que estamos perdendo menos se ficarmos só em casa: um trabalho é melhor que dois. Mas temos que olhar do alto para ver a cena toda. Se a gente não olhar para o que os homens estão fazendo, acaba culpando o feminismo.

Mas o problema não é feminismo, que te fez trabalhar e ter dinheiro para sair dessa relação, se ela for abusiva, que te deu autonomia para poder minimamente votar, ter alguma voz. A gente tem que lutar para que isso seja expandido, e não retirado.

Temos que tirar os óculos da romantização em cima das relações antigas, que muitas vezes não eram nem um pouco boas. A mulher era posse do marido, não podia ter um bem em nome dela. Queremos voltar para isso mesmo? Muitas de nossas avós estavam sendo estupradas maritalmente para ter um filho por ano, tinham que esconder dinheiro para que o homem não tirasse delas. Tem verdadeiras histórias de terror que não são contadas porque as mulheres sentem que devem uma narrativa bonita sobre a família e calam sobre as coisas ruins.

O troféu é um objeto que fica parado dentro de casa em uma estante. É isso que a gente quer ensinar para as nossas meninas?

BBC: Pais são seres humanos e sempre vão errar. Tem como criar um filho sem traumas? Ou ao menos uma geração mais saudável emocionalmente?

Basile: Não existe nenhum ser humano que não vá fazer algo que gostaria de não ter feito com os filhos. Mas o amor vai se exprimir na forma como a gente lida com os erros. Querer ser uma mãe ou um pai que não erra nunca pode causar uma culpa tão avassaladora que gera até dificuldade de fazer uma reparação. Não é esse o caminho, o caminho é a gente olhar para os erros com maturidade, deixar a vergonha de lado e assumi-los. Isso vai mostrar o amor.

Cada um tem sua história e carrega as cicatrizes dos desertos emocionais pelos quais passou. O que a gente pode fazer é cuidar dessa cicatriz para ela não rasgar, não abrir e não doer. Não é transformar o deserto numa floresta, é olhar para ele de uma maneira que não domine a nossa forma de se relacionar.

Acho que dá pra ter uma Infância com menos violência, reduzir danos, mas as famílias também não têm o poder de barrar toda uma cultura adoecida, baseada na opressão de alguns grupos sobre outros. Precisamos de mudanças para uma cultura que crie famílias menos adoecidas.

BBC: Que conselhos você daria para uma mãe ou pai recente?

Basile: Eu diria para confiarem no desejo de conexão que eles têm, no desejo de amar essa criança. que não caiam no papo de que não devemos criar expectativas: vamos, sim, criar expectativas, que não precisam ter a ver com nosso engrandecimento, mas temos que querer coisas boas para os nossos filhos, permitir que eles tenham voz.

Também precisamos nos permitir ter voz, ser respeitados. É uma relação de mão dupla. Não podemos nos apagar ou nos martirizar em nome de uma teoria ou de fazer o oposto do que os pais fizeram conosco.

Vamos colocar mais foco na conexão real, saber que tem dias ruins, tem braveza, tem pedido de desculpas, conflito, choro, um monte de coisas que na rede social não pega bem. Autenticidade é isso, e a criança precisa de verdade.

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