Quase 72 horas depois da queda do avião Embraer 190 que fazia o voo J2-8243 entre Baku (Azerbaijão) e Grozny (república russa da Chechênia), o presidente da Rússia, Vladimir Putin, "ofereceu suas desculpas pelo trágico incidente", mas não admitiu responsabilidade pelo desastre que matou 29 dos 67 ocupantes, entre passageiros e tripulantes. Além de uma nota divulgada pelo Kremlin, Putin telefonou para os presidentes Ilham Aliyev (Azerbaijão) e Jomart Tokayev (Cazaquistão). Na conversa com Aliyev, o líder russo disse que o avião "tentou aterrissar no aeroporto de Grozny". "Naquele momento, (as cidades de) Grozny, Mozdok e Vladikavkaz estavam sendo atacadas por drones de combate ucranianos, e o sistema de defesa aérea russo repeliu os ataques", acrescentou.
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Durante a ligação com Tokayev, Putin declarou que "a comissão governamental cazaque encarregada de investigar todos os detalhes do incidente chamará especialistas russos, azerbaijanos e brasileiros". "Este trabalho, realizado no território do Cazaquistão, será objetivo e transparente", disse, segundo comunicado do Kremlin. O avião da companhia aérea Azerbaijan Airlines, de fabricação brasileira, caiu se incendiou perto de Aktau, um porto no Mar Cáspio, no oeste do Cazaquistão, depois de desviar da rota original.
Aliyev reforçou as suspeitas de que a aeronave sofreu uma interferência física e técnica externa, pouco antes da queda. A Presidência do Azerbaijão citou as múltiplas perfurações na fuselagem do avião, as lesões sofridas pelos passageiros e pela tripulação (...) e os testemunhos (...) como indícios.
Envolvimento
Oleksiy Melnyk, piloto militar ucraniano de caça MiG-21 entre 1984 e 2000, afirmou ao Correio que o envolvimento da Rússia na queda do avião da Azerbaijan Airlines é "óbvio". "Não tenho dúvidas de que a razão primária para o incidente está no fato de que essa aeronave civil foi atingida por fragmentos de um míssil terra-ar. Ao avaliarmos as fotografias, os vídeos disponíveis e os relatos de passageiros e tripulantes, podemos confirmar que houve uma explosão do lado de fora do Embraer 190. Os destroços do míssil perfuraram a fuselagem e feriram alguns dos ocupantes do voo. Isso ocorreu perto de Grozny, na Rússia", explicou o morador de Kiev.
Para Melnyk, ainda não está 100% claro o motivo pelo qual a aeronave não foi desviada para o aeroporto mais próximo de Grozny, se ela tinha sido atingida pelos fragmentos do míssil. "O avião foi seriamente danificado e deveria ter feito um pouso de emergência em algum aeroporto da região. Creio que haveria uma grande chance de ele aterrissar a salvo, em vez de ser enviado ao Cazaquistão", admitiu.
O ex-militar reconhece a atitude "extremamente profissional" do comandante do voo da Azerbaijan Airlines. "Aeronaves civis não são projetadas para resistir a avarias causadas por mísseis. O sistema hidráulico (do Embraer 190) foi danificado. Um piloto precisa ter um alto nível de habilidade para conseguir pousar nessas condições. Acho que o fato de 29 passageiros terem sobrevivido se deve ao piloto", observou Melnyk.
Ainda segundo ele, o rastreamento do avião indica mudanças bruscas de altitude e de direção. "Um vídeo exibe os últimos segundos em que a aeronave sai do controle. A tripulação conseguiu operar um avião gravemente avalariado por tanto tempo e tentou o pouso."
Analista da Fundação de Iniciativas Democráticas Ilko Kucheriv (em Kiev), Petro Burkovsky afirmou ao Correio que a omissão em assumir responsabilidade pela queda de aeronaves é uma tradição que remonta à era soviética. "Se averiguarmos a história, veremos que os soviéticos derrubaram, por várias vezes, aviões civis com passageiros. O próprio Putin ordenou aos seus comandantes que disparassem contra a aeronave da Malaysia Airlines, em 17 de julho de 2014. Os russos nunca reconhecem a responsabilidade por esses incidentes", disse.
Responsabilização
Segundo Burkovsky, Putin deve ser considerado culpado pela queda do Embraer 190. "Isso ocorreu porque ele concedeu poder demasiado para os militares atacarem alvos que considerem uma ameaça", lembrou o ucraniano. "Ao que tudo indica, eles confundiram a aeronave com um objetivo militar e o derrubaram, sem nenhum procedimento de dupla verificação. Em resumo, a tragédia foi o resultado do sistema criado por Putin em seu próprio país. Infelizmente, creio que esses incidentes continuarão, porque é o modo como Putin funciona. Ele tenta se proteger de qualquer tipo de ameaça."
Olexiy Haran, professor de política comparada da Universidade de KyivMohyla, considera que Putin não se importa com vidas de civis. "Basta lembrarmos da derrubada do avião da Malaysia Airlines, no leste da Ucrânia, quando 298 pessoas morreram. As investigações provaram a culpa da Rússia."
DUAS PERGUNTAS PARA...
OLEKSIY MELNYK, piloto militar ucraniano de caça MiG-21 entre 1984 e 2000
Putin alega que, no dia da queda do avião, a Rússia respondia a um ataque com drones. O espaço aéreo russo não deveria estar fechado?
A tragédia poderia ter sido evitada. Se havia atividade militar na área, qualquer controlador de tráfego aéreo profissional deveria, imediatamente, tomar todas as medidas para proteger as aeronaves civis que voavam na região. Isso não foi feito. Houve uma clara violação das normas da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO, pela sigla em inglês). O espaço aéreo até uma certa altitude deveria ter sido fechado para aviões civis, em caso de atividade militar.
O senhor vê indícios de um crime de guerra cometido pela Rússia?
Cabe à equipe de investigação internacional e ao Tribunal Penal Internacional decidirem quem deveria ser responsabilizado por isso. Apesar dos crimes de guerra cometidos pelo presidente Putin na Ucrânia, não acho que esse caso particular deve ser atribuído a ele. Provavelmente, Putin não foi informado sobre o risco ao avião da Azerbaijan Airlines e não tinha o controle da situação. Quando olhamos para as causas dessa tragédia e do terrível incidente com a aeronave da Malaysian Airlines, em 2015, a cadeia de acontecimentos termina em Vladimir Putin. (RC)