Quando Gisèle Pelicot, uma avó de 72 anos, deixou o tribunal correcional de Avignon, 693km ao sul de Paris, onde ficou frente a frente com os 51 estupradores, inclusive o ex-marido, Dominique Pelicot, fez questão de enviar uma mensagem para as outras vítimas de abuso sexual. "Estou pensando nas vítimas não reconhecidas, cujas histórias muitas vezes permanecem nas sombras. Quero que saibam que compartilhamos da mesma luta", disse.
Ao fim de 108 dias em que Gisèle expôs suas cicatrizes para o mundo, o juiz Roger Arata condenou Dominique à pena máxima de 20 anos de prisão por drogar a ex-mulher e convidar dezenas de homens para estuprá-la, entre 2011 e 2020, na residência do casal, no vilarejo de Mazan. Dominique registrou todos os crimes em centenas de vídeos e fotos.
"Sou um estuprador, assim como os outros nesta sala", declarou Dominique, em alusão aos demais criminosos, entre 26 e 74 anos. Além do ex-marido de Gisèle, 48 réus foram condenados por estupro agravado e dois, pelo crime de abuso sexual, com penas que variam de 3 anos a 15 anos de prisão. Outro foi absolvido. "Eu respeito a sentença", disse Gisèle, recebida como heroína à saída do tribunal.
Durante o julgamento, ela fez questão de encarar cada um de seus algozes. Entre os estupradores, estão um caminhoneiro de 73 anos, um técnico esportivo de 69 e um homem que sabia ser portador do HIV (o vírus causador da Aids) e, ainda assim, estuprou Gisèle em seis ocasiões sem usar preservativo. Jean-Pierre Marechal, 63, copiou o modus operandi de Dominique, de quem era colega de trabalho, dopou a esposa e a submeteu a estupro coletivo por uma década. Foi condenado a 12 anos.
Sob a condição de anonimato, um membro da família Pelicot revelou à agência France-Presse que os filhos de Gisèle, David Pelicot, 50, e Caroline Darian, 45, ficaram decepcionados com a dosimetria das penas, abaixo da punição pedida pelo Ministério Público.
Insatisfação
Vice-presidente da ONG Osez Le Féminisme, Maïna Cerniawsky advertiu ao Correio que a justiça não foi feita. "Ela nunca é feita para mulheres vítimas de violência em uma sociedade estruturalmente machista. Lamentamos as sentenças de alguns dos acusados que, apesar de todos os agravantes, são inferiores à pena média para um estuprador condenado na França: de 10 a 11 anos. Vale lembrar que, hoje, no país, 86% dos casos de violência sexual e 94% dos casos de estupro são arquivados. Isso significa que a pena média de 10 anos é aplicada a apenas 0,09% a 1% dos estupradores condenados, uma vergonha lamentável", disse. "É doloroso pensar que Gisèle Pelicot enfrentou quatro anos de instrução e quatro meses de processo, mas alguns de seus violadores receberam uma pena inferior ao tempo em que ela passou no processo."
Cerniawsky não considera que a pena de 20 anos seja alta. "É o que determinam os textos jurídicos. Diferentemente de outros países, na França, as sentenças não são cumulativas. Queremos que as pessoas entendam que, no país, menos de 1% dos homens acusados de estupro são condenados a qualquer pena; 99,02% permanecem livres. Essa impunidade precisa acabar", cobrou. Para a ativista, é importante lembrar a vítima de Dominique, que é praticamente apagada do discurso midiático: a sua filha Caroline Darian, que denunciou o pai e, hoje, lidera uma associação para vítimas de submissão química. "O tabu do incesto e os métodos judiciais, infelizmente, negam a ela um mínimo de justiça. Saudamos sua coragem e ativismo, também."
A representante da Osez Le Féminisme vê Gisèle como "uma mulher extraordinária, que tomou uma decisão consciente de colocar a tragédia que sofreu a serviço da sociedade". "Seu caso teve repercussão por vários fatores que colaboraram para que, mesmo em uma sociedade machista, ela fosse vista com empatia. O número de agressões; o fato de serem incontestáveis, por haver vídeos; o nível de submissão química que a deixou quase em coma; além de ser uma mulher heterossexual, branca, de classe média, avó e casada. Tudo isso contribui para o que chamamos de 'vítima perfeita', aquela socialmente vista como merecedora de compaixão."
Cúmplices
O psiquiatra forense francês Paul Bensussan (leia Duas perguntas para), especialista aprovado pela Corte de Cassação e pelo Tribunal Penal Internacional (em Haia), avaliou pessoalmente Dominique Pelicot em 2021, em outro caso. Em entrevista ao Correio, Bensussan — professor de medicina na Universidade Paris Descartes (ou Universidade Paris V) — disse que Dominique não tinha problemas para recrutar seus cúmplices. "Ele o fazia por meio de pequenos anúncios, sob um título que poderia evocar uma prática libertina, dizendo que sua esposa estava 'adormecida' (Dominique não mencionava que ela era drogada com benzodiazepínicos) seria 'oferecida' a amadores, sob seu controle e em sua presença. Para ele, era uma questão de satisfazerem suas fantasias, enquanto se mostrava protetor de sua mulher, ao menos na aparência", afirmou o especialista.
Segundo Bensussan, o desejo de dominação e de controle de Dominique emerge, acima de tudo, dos vídeos que gravou, mostrando que não apenas Gisele, mas também os 'convidados', estavam sob domínio dele. "O mais espantoso foi a passividade dos cúmplices: mesmo vendo essa mulher idosa, obviamente drogada, com roncos altos, que não poderia despertar de seu sono, nenhum deles fugiu ou desistiu do ato sexual, nenhum denunciou, nem anonimamente, o que ocorria naquela casa", comentou.
DUAS PERGUNTAS PARA...
PAUL BENSUSSAN, psiquiatra forense, especialista aprovado pela Corte de Cassação e pelo Tribunal Penal Internacional. Professor de Medicina na Universidade Paris V e especialista em estudo da sexologia humana
De que forma o senhor avalia o perfil psicológico de Dominique Pelicot?
O perfil de Dominique Pelicot é impressionante. Antes de tudo, por sua aparente normalidade, que oferece um contraste arrebatador com a natureza verdadeiramente extraordinária — e, até onde sei, sem precedentes na história dos crimes sexuais contemporâneos — dos atos que lhe renderam sua condenação. Esse contraste deve ser compreendido como a manifestação de um mecanismo de defesa chamado de "clivagem" e que permite a coexistência de duas personalidades perfeitamente incompatíveis, sem que ninguém, incluindo os mais próximos, possam suspeitar de tal dualidade. Em Dominque, coexistiam o marido apaixonado pela esposa (50 anos de casamento), o pai exemplar, o homem apreciado pelos amigos... Mas, também, um indivíduo completamente desprovido de empatia, habitado por fantasias indizíveis, poderosamente egocêntrico. A esses traços de caráter, acrescenta-se a ausência de qualquer barreira moral, seja em relação à esposa, submetida sem qualquer escrúpulo a estupradores, sem proteção sanitária; seja em relação à filha, a quem ele claramente drogou. Fotos de Caroline dormindo, vestida de roupa íntima, foram encontradas no computador de Dominique. Para ela, isso é um veneno instilado por toda a vida em sua mente: o veneno da dúvida, uma vez que ela jamais saberá se foi abusada pelo pai.
O senhor acredita que ele sofra de algum transtorno sexual?
A personalidade de Dominique é marcante por frieza emocional, autoridade próxima do autoritarismo, psicorrigidez, caráter desconfiado e ressentido, e absoluta ausência de empatia. Ele é muito manipulador e sabe se vitimizar, chegando a se apresentar, no julgamento, como vítima de si mesmo. Mas o mais óbvio sobre ele é o número surpreendente de parafilias: voyeurismo, exibicionismo, sonofilia (excitação por uma relação sexual com uma mulher adormecida), candaulismo (exposição da parceira sexual nua para o prazer de terceiros), sadismo sexual, além de fantasias pedófilas óbvias. (RC)
PERSONAGEM DA NOTÍCIA
De sobrevivente a ícone do feminismo
Aos 72 anos, Gisèle Pelicot se tornou um símbolo do feminismo mundial, ao enfrentar os seus algozes e levá-los ao tribunal. A avó de sete netos conquistou o coração da França, ao afirmar que seus agressores, e não ela, eram aqueles que deveriam sentir vergonha. Em vez de sentir-se constrangida, renunciou ao direito de anonimato e exigiu a autorização de acesso do público ao julgamento.
"Eu queria que todas as mulheres vítimas de estupro afirmassem: 'Se a senhora Pelicot fez isso, nós podemos fazer'", declarou, em outubro. "Não quero que (as vítimas) sintam mais vergonha, e sim os agressores", acrescentou. Em agosto, Gisèle se divorciou de seu marido e algoz, Dominique Pelicot. O homem de 72 anos admitiu as agressões sexuais coletivas, que documentou meticulosamente durante nove anos com fotos e vídeos, e foi condenado a duas décadas de prisão.
Sua ex-mulher se mudou para longe de Mazan, a cidade no sul da França onde a maioria dos estupros ocorreu e onde foi tratada como "um pedaço de carne", uma "boneca de pano" em sua casa, em suas próprias palavras.
Filha de um militar, Gisèle nasceu em Villingen, no sudoeste da Alemanha, em 7 de dezembro de 1952, e se mudou para a França com cinco anos. Quando tinha nove, sua mãe morreu de câncer, com apenas 35 anos. Quando seu irmão, Michel, faleceu, vítima de um ataque cardíaco em 1971, aos 43, ela ainda não havia completado 20. No mesmo ano, conheceu Dominique Pelicot, seu futuro marido e agressor sexual.
Seu sonho era ser cabeleireira, mas ela fez um curso de datilografia. Após alguns anos de trabalhos temporários, desenvolveu toda a sua carreira no grupo elétrico francês EDF, onde terminou como encarregada de um departamento de logística para centrais nucleares. Em casa, cuidou de seus três filhos e, depois, dos sete netos. Quando se aposentou, ela gostava de caminhar e cantar em um coral local.
EU ACHO...
"O que fica de inspiração é que não estamos sozinhas. Este caso permite trazer à tona discussões sérias sobre o fato de que as violências sexuais — mas também psicológicas e físicas — não ocorrem nas ruas, como se imagina popularmente. Todas as estatísticas mostram unanimemente que, infelizmente, em todo o mundo, o lugar onde as mulheres mais correm risco é dentro de suas próprias casas, em relações heterossexuais."
Maïna Cerniawsky, vice-presidente da organização não governamental Osez Le Féminisme
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