Um dia depois de afirmar que "agora é hora de esse povo desfrutar de estabilidade e de calma", o primeiro-ministro interino da Síria, Mohammed Al-Bashir, nomeado pela organização jihadista Hayat Tahrir al Sham (HTS), voltou a fazer acenos à população e à comunidade internacional. O premiê prometeu que a aliança de rebeldes que depôs o ditador Bashar Al-Assad, no último domingo (8/12), garantirá os direitos de todos os grupos religiosos. "Especificamente porque somos islâmicos, garantiremos os direitos de toda a população e de todos as religiões na Síria."
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Ao mesmo tempo, as Forças de Defesa de Israel (IDF) mantiveram bombardeios a instalações militares do antigo regime de Al-Assad e tornaram a realizar incursões à zona desmilitarizada nas Colinas do Golã. As manobras aumentam ainda mais a tensão no Oriente Médio e suscitam dúvidas sobre as reais intenções do governo de Benjamin Netanyahu.
Durante entrevista ao jornal Corriere della Sera, Al-Bashir conclamou os milhões de sírios exilados e refugiados no exterior a retornarem para "reconstruir" e fazer "florescer". "Voltem", insistiu o chefe de governo transitório. Segundo a agência de notícias France-Presse (AFP), cerca de 6 milhões de sírios, ou quase 25% da população, fugiram da Síria nos últimos 13 anos, desde a eclosão da guerra civil, que matou mais de 500 mil pessoas.
Presidente do Instituto para Estratégia e Segurança de Jerusalém (JISS), Efraim Inbar explicou ao Correio que a ofensiva israelense na Síria tem um objetivo de autoproteção. "Israel pretende impedir que os islamistas tomem posse de um equipamento militar tão poderoso", afirmou. "Nós queremos aprimorar nossa habilidade de prevenir ataques como o de 7 de outubro de 2023."
Forças de paz
O especialista disse não ver violação de resolução do Conselho de Segurança da ONU. "Nós ajudamos as tropas das Forças de Observação de Desengajamento das Nações Unidas (UNDOF) a sobreviverem a ataques islamistas. Mas, a UNDOF dificilmente é efetiva. Durante a guerra civil na Síria, eles simplesmente sumiram", afirmou Inbar.
Exilado em Paris, depois de ser preso e torturado pelo regime de Al-Assad, Bassam Alahmad — cofundador e diretor executivo da organização não governamental Syrians for Truth and Justice ("Sírios pela Verdade e pela Justiça") — admitiu ao Correio que a segurança é questão tácita, antes de retornar ao país natal.
"Quero garantias de que ninguém me prenderá, ninguém me assassinará, e que não voltarei a ser torturado. Também é preciso restabelecer os serviços. Você não pode voltar a um país sem que exista eletricidade, água, saúde, educação. O mais importante é que precisamos de justiça de transição, de um processo que leve o país a um novo rosto e que tenha democracia inclusiva. Todos esses elementos ajudarão muitos sírios a mudarem sua mentalidade e a voltarem para a Síria, a fim de ajudar a reconstruir a nação", comentou.
Mais cedo, o papa Francisco fez um apelo às diferentes religiões na Síria a favor da união e da tolerância. O pontífice também pediu que "povo sírio possa viver em paz", em uma declaração ao fim da tradicional audiência geral da quarta-feira, no Vaticano. Ele reconheceu o "momento delicado da história da Síria" e expressou o desejo de que "as diversas religiões posam caminhar juntas na amizade e respeito recíprocos". O líder católico defendeu "uma solução política que possa promover de maneira responsável a estabilidade e a unidade do país, sem mais conflitos ou divisões".
Ayman Abdelnour, ex-amigo de Al-Assad e um dos representantes da oposição no exílio (em Washington), compartilha de uma visão otimista sobre o futuro da Síria. "Os grupos que tomaram o poder são diferentes de facções como o Talibã. O povo sírio é historicamente moderado. Os sírios pressionarão pela derrubada do HTS, caso adote posições radicais ou fanáticas. Eles tomaram medidas, fomos até as redes sociais para criticá-las e, no dia seguintes, a cancelaram. Para mim, é um bom sinal", declarou ao Correio, por telefone. Segundo ele, 15% dos integrantes do HTS são mais fanáticos. "Esperamos que o grupo os expulse e que tudo seja resolvido logo."
Receio
Em relação à ofensiva israelense, Abdelnour acredita que Netanyahu teme ataques terroristas por parte dos 15% de componentes radicalizados do HTS. "A partir da Mesquita dos Omíadas, em Damasco, eles gravaram um vídeo no qual prometiam tomar a Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém. Eles não representam a Síria, não são cidadãos sírios, esses fanáticos", explicou. "Foi por esse motivo que Israel criou a zona de contenção, nas Colinas do Golã, avançou seus tanques até a Síria e atravessou as linhas demarcadas pela Organização das Nações Unidas."
Para Alexandra Blackman, professora do Departamento de Governo da Universidade Cornell, os principais fatores que ajudam a entender o rápido colapso de Al-Assad foram a fraqueza subjacente do regime e a perda de apoio da comunidade internacional. "Ele monopolizou territórios ao longo dos anos, mas grandes faixas de terra ficam fora de seu domínio. O nordeste da Síria, por exemplo, permaneceu sob o controle das Forças Democráticas Sírias", lembrou à reportagem.
DUAS PERGUNTAS PARA
BASSAM ALAHMAD, cofundador e diretor executivo da ONG Syrians for Truth and Justice (Sírios pela Verdade e pela Justiça), exilado em Paris
Como o senhor vê a promessa de garantia aos direitos de grupos religiosos feita pelo novo premiê?
Considero as declarações do primeiro-ministro interino Mohammed Al-Bashir muito positivas, ao dar garantias de proteção às minorias religiosas. No entanto, a história do conflito na Síria e as ações do Hayah Tahrir al Sham (HTS) e de outros atores no país mostram que devemos julgar as atitudes do premiê, não as palavras. Há violações ocorrendo contra minorias, igrejas e comunidades alauítas de áreas que eram pró-regime de Al-Assad. As novas autoridades deveriam investigá-las e responsabilizar os autores, porque não podemos punir toda a comunidade somente porque Al-Assad era alauíta. Deve existir justiça e uma Corte independente para os julgamentos e as punições. Precisamos ter certeza de que as palavras de Al-Bashir correspondem às ações. As violações têm ocorrido em muitas áreas, como em Hama e em Latakia.
Existe o risco de jihadistas ligados ao HTS iniciaram uma caçada às minorias religiosas sírias?
É óbvio que existe esse risco. Não estamos apenas falando do HTS, mas também de outros grupos, especialmente de facções apoiadas pelo governo da Turquia. O Exército Nacional Sírio têm um imenso histórico de violações contra os curdos, os yazidis e outras minorias. Nós tememos isso, mas saudamos a declaração do premiê, que também prometeu impedir o Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, de cometer violações. Queremos romper o ciclo de violência neste país e esperamos que o HTS seja honesto em suas palavras. Não sabemos se isso é uma mensagem direcionada à comunidade internacional. (RC)
EU ACHO...
"O principal erro de Bashar Al-Assad foi pensar que poderia manipular a Rússia, os árabes e os iranianos. Quando os iranianos estavam fartos, Al-Assad tentava manipular os árabes e, da mesma forma, os russos. Ele achou esses atores enviariam tropas, artilharia e armas, a fim de protegê-lo. Isso não ocorreu."
Ayman Abdelnour, ex-amigo de Al-Assad e um dos representantes da oposição no exílio (em Washington)
"A ausência de monopólio sobre a força dentro da Síria é um indicador da fraqueza do regime. Embora o regime de Al-Assad tenha mantido o poder com o apoio de grupos, como o Hezbollah, e de países, como Rússia e Irã, o apoio desses atores foi enfraquecido por outros conflitos internacionais, particularmente a invasão israelense ao Líbano."
Alexandra Blackman, professora do Departamento de Governo da Universidade Cornell
Rebeldes incendeiam o mausoléu do pai de Bashar Al-Assad
O túmulo de Hafez Al-Assad, pai do ditador sírio deposto Bashar Al-Assad, foi incendiado em sua cidade natal, Qardaha, de acordo com imagens de vídeo obtidas pela agência France-Presse (AFP). Elas mostram combatentes rebeldes e jovens assistindo ao fogo tomar conta da sepultura. Em uma das fotos publicadas nas redes sociais, um dos insurgentes faz um gesto obsceno com o dedo em direção ao túmulo. O mausoléu está localizado no coração da comunidade alauíta de Al-Assad em Latakia (noroeste). Natural de Raqqa, o jornalista sírio Hussan Hammoud — hoje exilado em Paris — assistiu às imagens de Qardaha com alívio. "É o fim da adoração de um falso deus, uma ruptura com aquele círculo horrível para o nosso povo", disse ao Correio.
Aiatolá descarta enfraquecimento do Irã
Em rara aparição pública, o aiatolá Ali Khamenei — líder supremo do Irã — comentou pela primeira vez a queda do ditador sírio, Bashar Al-Assad, aliado histórico de Teerã. "Alguns ignorantes do significado da resistência, acreditam que quando esta se enfraquece, a República Islâmica do Irã também se enfraquece, mas o Irã é forte e poderoso e se tornará ainda mais poderoso", declarou.
"Não há dúvida de que o que aconteceu na Síria é fruto de uma conspiração dos Estados Unidos e de Israel", disse Khamenei, que está no poder desde 1989 e tem a última palavra nas decisões estratégicas do Irã. "Um governo vizinho da Síria desempenhou um papel óbvio nesta questão", acrescentou, em referência velada à Turquia. A Síria de Al-Assad funcionava como um entreposto de armas e de conselheiros militares do movimento xiita libanês Hezbollah e era peça do chamado "eixo de resistência" anti-Israel.
Majid Rafizadeh, cientista político e especialista em Oriente Médio pela Universidade de Harvard, avalia que a queda de Al-Assad provavelmente terá graves consequências para o Irã. "Ela enfraquecerá a influência regional de Teerã. A Síria é pedra singular do 'eixo de resistência' do Irã, servindo como um canal crítico para seu apoio ao Hezbollah, no Líbano, e a outras milícias aliadas na região", disse ao Correio.
"A perda de Al-Assad interromperá essa rede logística, minando a capacidade de projetar poder no Levante (parte do Oriente Médio que compreende Israel, Jordânia, Líbano e Síria). Também isolará o Hezbollah, além de reduzir seu acesso às armas iranianas, e debilitará a estratégia mais ampla de Teerã de cercar Israel", acrescentou.
Ainda segundo Rafizadeh, o Irã mantém ferramentas substanciais de poder, como o Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, uma rede de milícias leais e seu apelo ideológico entre certas comunidades xiitas. "O Irã mostrou resiliência, por meio da adaptabilidade estratégica, como a duplicação da guerra assimétrica, o desenvolvimento de mísseis balísticos e a exploração de divisões entre seus adversários", observou. No entanto, o estudioso de Harvard entende que a crescente resistência de nações, como a Arábia Saudita e Israel, e alianças regionais em transformação sinalizam que a influência iraniana enfrenta desafios. (RC)