LITERATURA

Clarice Lispector: a história por trás do novo sucesso internacional da escritora brasileira

Cate Blanchett chamou a autora de 'gênia absoluta' no palco do último festival de cinema de San Sebastián - revelando ser parte de uma nova legião estrangeira de fãs da escritora.

A escritora nasceu em Tchechelnik, na Ucrânia, em 1920 e chegou ainda bebê ao Brasil -  (crédito: Editora Rocco/Divulgação)
A escritora nasceu em Tchechelnik, na Ucrânia, em 1920 e chegou ainda bebê ao Brasil - (crédito: Editora Rocco/Divulgação)

A atriz australiana Cate Blanchett entrou no palco do último Festival de Cinema de San Sebastián emocionada depois de receber uma homenagem pelo conjunto de sua obra.

Enxugando as lágrimas, em um exuberante vestido de renda dourado de gola alta e mangas longas, ela começou seu discurso de agradecimento dizendo ser movida pela "busca por entender o que significa ser humano". "Esse nó estranho de incerteza assustadora e prazerosa que é ser humano."

E emendou: " Vivemos em tempos incertos, e eu tomo coragem em Clarice Lispector, uma autora brasileira que é uma gênia absoluta, cuja obra tenho lido recentemente".

Blanchett recitou então um trecho da crônica Diálogo do Desconhecido, publicada na coletânea A Descoberta do Mundo.

"Existem certas vantagens em não saber. Como um território virgem, a mente está livre de equívocos. Tudo o que não conheço constitui a maior parte de mim: esta é a minha dádiva. E com esse não saber, eu entendo tudo."

Minutos depois, durante a coletiva de imprensa após a premiação, citou Clarice novamente, desta vez uma frase de A Hora da Estrela.

Blanchett é parte de uma nova legião estrangeira de fãs da escritora. A obra de Clarice Lispector tem carreira internacional há muito tempo — Perto do Coração Selvagem foi traduzido pela primeira vez para o francês em 1954 —, mas na última década o interesse estrangeiro pela escritora brasileira explodiu.

O novo patamar que seu sucesso internacional alcançou é a parte visível de uma história que, nos bastidores, mistura elementos tão distintos quanto a obsessão de um escritor americano pela autora, a dedicação de seu filho mais novo para levar a obra da mãe para o mundo e a própria qualidade da obra de Clarice, atemporal e universal.

Clarice Lispector em foto em preto e branco
Editora Rocco/Divulgação
A escritora nasceu em Tchechelnik, na Ucrânia, em 1920 e chegou ainda bebê ao Brasil

A 'igreja de Clarice'

Desde os anos 1980, os livros da autora eram publicados em inglês nos Estados Unidos pela editora New Directions, mas nunca haviam alcançado um grande público porque as traduções eram consideradas ruins e não captavam a voz da escritora.

Foi isso que o crítico Benjamin Moser, biógrafo de Clarice, disse à presidente da New Directions, Barbara Epler, para convencê-la a retraduzir parte das obras que a editora tinha no catálogo e lançar algumas ainda inéditas no mercado anglófono.

"Foi ele que deu o empurrão que me lançou nessa aventura toda", disse Epler à BBC News Brasil.

Desde que descobriu a escritora brasileira, aos 19 anos, Moser ambicionava torná-la mais conhecida fora do Brasil. Em um curso de português na universidade, descobriu A Hora da Estrela e ficou fascinado com a obra e a figura enigmática da escritora.

Em um texto publicado na revista Quatro Cinco Um no ano passado, escreveu que Clarice Lispector é como uma "igreja" — da qual ele mesmo seria adepto.

"Ela é uma religião. Tem acólitos, dá as caras em sessões espíritas e, de vez em quando, até reencarna: sei disso porque às vezes reencarnações dela me procuram no Instagram. Ela também atrai um número bastante atípico de obsessivos excêntricos: sei disso porque eu mesmo sou um deles."

Epler conta que Moser apresentou a ideia de um projeto ambicioso de publicação da obra da escritora em inglês em 2009, em um bar em Nova York, dias depois do lançamento da biografia que ele escreveu sobre Clarice, Why this World (Por que Este Mundo).

"Ele disse pra mim: 'Chegou a hora de um revival completo da obra de Clarice — e as traduções de vocês são horrorosas'", lembra Epler, rindo. "Vocês estão colocando maionese no negócio, estão fazendo os livros parecerem muito mais simples do que são", ele continuou.

Capa do livo 'Os desastres de Sofia', de Clarice Lispector, lançado no Japão
Editora Rocco/Divulgação
Traduções de Clarice para o japonês também estão disponíveis

O escritor sacou então versões em português e inglês de A Hora da Estrela e começou a apontar as diferenças — por exemplo, como as quebras nas frases da versão original haviam desaparecido e dado lugar a um texto mais direto.

Mesmo sem entender português, a editora conseguiu perceber que aqueles eram "animais diferentes".

"Ele disse categoricamente que a Clarice era mal interpretada, que ela era na verdade radical, que a linguagem dela não era de jeito nenhum polida, era quebrada. Argumentou ainda que ela era uma das mulheres mais qualificadas daquela geração, a primeira mulher judia a ter um diploma de direito."

Os olhos de Epler também brilharam quando ela ouviu que havia livros ainda totalmente desconhecidos do público que lê em inglês, como O Lustre.

Juntos, eles mergulharam então em um projeto com jovens tradutores, supervisionados por Moser e em parceria com a Penguin Classics, que faria os lançamentos no Reino Unido.

O primeiro livro publicado foi A Hora da Estrela, em 2011, traduzido pelo próprio biógrafo. Em 2012, foram quatro: Perto do Coração Selvagem, Água Viva, A Paixão Segundo G. H. e Um Sopro de Vida.

Três anos depois veio The Complete Stories, que reunia mais de 80 contos e foi um sucesso editorial e de crítica, publicado primeiro em inglês e, no ano seguinte, em português.

Clarice Lispector
Acervo Instituto Moreira Salles
Clarice foi descrita em crítica do New York Times como 'feiticeira' e 'monstro sagrado'

A essa altura, o nome de Clarice já tinha ganhado nova projeção internacional.

Quando O Lustre foi lançado em 2018, a crítica literária Parul Sehgal começou sua resenha no jornal The New York Times com um contundente "Esfinge, feiticeira, monstro sagrado. O revival da hipnótica Clarice Lispector tem sido um dos grandes eventos literários do século 21".

No total, foram 15 livros lançados, sendo o mais recente A Maçã no Escuro, em novembro de 2023. Há mais um previsto para fevereiro de 2025, Covert Joy: Selected Stories, uma seleção das "melhores e mais queridas" histórias da autora, conforme a descrição no site da editora, e outros dois, uma reunião de cartas e uma seleção de crônicas, que devem sair em 2026 e 2027, respectivamente.

Procurado pela BBC News Brasil, Moser respondeu, por e-mail: "Eu já dei tantas entrevistas sobre este assunto na minha vida que acho que é melhor me aposentar! Espero que compreenda." Em 2019, ele publicou seu novo projeto, uma biografia da escritora Susan Sontag.

Epler conta que Clarice Lispector está hoje entre os 10 autores mais vendidos da New Directions, que publica em inglês estrelas da literatura latinoamericana como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Foram 350 mil cópias vendidas, sendo 50 mil de The Complete Stories e 105 mil de A Hora da Estrela.

Fazer algum sucesso no mercado literário americano não é fácil. O país é inundado de novos títulos todos os anos - 400 mil, afirma Epler - e o público local costuma consumir mais autores americanos do que estrangeiros.

Clarice Lispector
Acervo Instituto Moreira Salles
A New Directions tem mais três lançamentos de livros da autora previstos até 2027

Macabéa em turco, árabe, mandarim, finlandês

A recepção dos leitores e da crítica à obra de Clarice nos países de língua inglesa abriu as portas do mundo para a escritora brasileira. Bruno Zolotar, diretor de marketing e vendas da Editora Rocco, casa editorial da obra da autora, diz que há atualmente 400 contratos de tradução ativos (cada contrato se refere a uma obra). A Hora da Estrela já foi publicado em mais de 40 países.

"É verdade que o trabalho de Clarice foi traduzido lá nos anos 1950 e 60, para o inglês, francês e espanhol, mas o que acho interessante é essa dispersão internacional [que vemos hoje]", diz Claire Williams, chefe do Departamento de Literatura e Cultura Brasileira do St. Peter's College, da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

"A Hora da Estrela hoje está disponível em turco, árabe, mandarim, ucraniano, catalão, finlandês, persa, indonésio… e mais. O Goodreads [plataforma de recomendação de livros] lista 120 edições! Isso mostra como ela está atingindo uma audiência global", completa Williams, que assina a introdução de Clarice Lispector Entrevista, recém-lançado pela editora Rocco, que reúne 83 entrevistas feitas pela escritora para as revistas Manchete, Fatos & Fotos: Gente e para o Jornal do Brasil com personalidades como Chico Buarque e Elke Maravilha.

Há quase 30 anos a pesquisadora estuda e escreve sobre Clarice em livros e periódicos acadêmicos e ensina sobre ela a seus alunos em Oxford. O primeiro livro da autora que ela apresenta em sala de aula é a coletânea de contos Laços de Família.

Foi Williams que redescobriu parte das entrevistas publicadas em 2007 e agora reeditadas em novo volume (com outras 35). Durante sua pesquisa de doutorado, em 1996, deparou-se com algumas delas no arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e ficou intrigada.

Clarice não usava gravador, fazia anotações à mão, costumava compartilhar mais sobre si mesma durante a entrevista do que os jornalistas de uma forma geral e se mostrava claramente mais à vontade quando estava conversando com alguém por quem tinha simpatia.

Nos últimos dez anos, conta a pesquisadora, os livros da autora têm aparecido cada vez mais nas seções de literatura latino-americanas das grandes livrarias no Reino Unido.

"Acho que ela transcende fronteiras e linguagens. [Sua obra] atrai leitores com todo tipo de bagagem, idade e origem, em parte porque trata de questões de identidade e de relações humanas. Toca em assuntos com os quais a maioria das pessoas se depara em algum momento de suas vidas", ela opina.

Capas de livros de Clarice Lispector
Editora Rocco/Divulgação
'Público amadureceu e passou a compreender melhor a proposta da escritora', vê editor

Frida Kahlo da literatura

Pedro Vasquez, responsável pela edição das obras da autora na editora Rocco, elenca o que acredita ser mais um ingrediente do sucesso atual de Clarice. Tanto no Brasil quanto no exterior, ele diz, o público amadureceu e passou a compreender melhor a proposta da escritora.

"Não é uma obra, assim, de entretenimento... é uma obra que mexe profundamente com o leitor", ele fala à BBC News Brasil.

"É aquele tipo de livro que você fecha e é aí que ele começa a trabalhar dentro de você. Você fica pensando, matutando sobre aquilo que leu."

Além de mergulhar em temas universais, ele acrescenta, a obra também traz uma perspectiva bastante moderna de questões femininas. "Você tem que lembrar que ela começa a publicar em 1943, né?", ele ressalta.

Não só no papel, aliás, com personagens femininas complexas e muitas vezes arrebatadas por dilemas existenciais, mas em sua própria vida.

Clarice formou-se em direito em uma época em que poucas mulheres cursavam ensino superior, começou a trabalhar muito cedo como jornalista, sempre se colocou como mulher independente e se separou do diplomata Maury Gurgel Valente quase duas décadas antes de o divórcio ser legalizado no Brasil, ainda em 1959, quando a família voltava de uma temporada de 7 anos em Washington.

"Ela volta para o Brasil para criar os dois filhos sozinha. Ela tem uma postura de vida muito corajosa, desbravando espaços para as mulheres", destaca Vasquez, que edita a obra da escritora há mais de 20 anos.

Nesse sentido, o editor também enxerga uma fascinação de parte do público pela própria figura da escritora, tanto por sua biografia quanto por sua personalidade, considerada muitas vezes enigmática. Um encantamento que também contribuiu para que ela tivesse uma audiência global.

"Ela seria uma contrapartida literária de uma Frida Kahlo", ele compara, referindo-se à artista mexicana que morreu em 1954 e se tornou uma espécie de ícone feminista da atualidade.

Assim como a pintora, Clarice também estampa camiseta e caneca e é pop nas redes sociais. Citações suas, aliás, são campeãs de compartilhamento — algumas fora de contexto e outras que nem dela são.

Clarice Lispector
Acervo Instituto Moreira Salles
A escritora em foto de 1969 de Alair Gomes

De rainha do Facebook a hit da bienal

A vocação pop ganhou um empurrão da Rocco na última década, quando a editora tem feito um esforço de popularização da escritora.

Um exemplo foi o lançamento, em 2011, do 10 de dezembro (aniversário da escritora) como a Hora de Clarice, um dia em sua homenagem, em que promove e incentiva ações em torno de sua obra.

Neste 10 de dezembro de 2024, divulgou a realização de uma leitura teatral no Rio a partir do livro Clarice Lispector Entrevista, interpretada pela atriz Beth Goulart e dirigida pelo cineasta Luiz Fernando Carvalho, que lançou neste ano o filme A Paixão Segundo G.H.

Nos últimos anos a editora também repaginou capas de livros e passou a publicar seleções da obra da autora, conteúdos mais facilmente digeríveis para leitores iniciantes.

"A gente sentiu que ela começou a pegar um público mais jovem", diz Bruno Zolotar, comentando sobre a Bienal do Rio do ano passado, quando o estande dedicado à autora foi um dos espaços mais frequentados pelos visitantes.

"Impressionou muito mesmo a quantidade de jovens na faixa de 18 a 25 anos olhando os livros dela."

O filho nos bastidores

Um personagem central por trás de todos esses movimentos é seu filho mais novo, Paulo Gurgel Valente. Ele é curador da obra de Clarice e trabalha cotidianamente nos bastidores para disseminar o trabalho da mãe — no Brasil e fora.

"O filho da Clarice, Paulo Gurgel Valente, perdeu sua mãe muito jovem e, quando ela estava doente, ele prometeu que tomaria conta de sua obra. E muitas coisas que nós sabemos ser da Clarice Lispector são graças ao trabalho dele. O Paulo tem feito isso e ele me disse que não havia um dia em sua vida que ele não fizesse algo para sua mãe", disse o biógrafo Benjamin Moser em entrevista à revista Trip em 2013. Clarice morreu de um câncer de ovário um dia antes de completar 57 anos.

Toda coletânea, antologia, reedição de livro, tudo passa pelo crivo de Valente.

Assim como a mãe (que já escreveu "Gosto de pedir entrevista: sou curiosa. Detesto dar entrevistas: me deformam"), ele não gosta de falar com a imprensa e declinou o pedido da BBC. Mas está constantemente próximo de quem trabalha com a obra da mãe.

"Sempre tenho contato com ele, tanto pessoalmente quanto por e-mail", diz Vasquez. "Ele acompanha tudo, faz a aprovação final da edição dos livros", completa.

"Ele é curador da obra da mãe com muito carinho e amor", afirma a professora da Universidade de Oxford Claire Williams, que o conheceu por meio da biógrafa Teresa Montero. "Mando para ele o que publico e sempre o informo quando organizo eventos [sobre Clarice]."

Foi dele a ideia de levar a obra da mãe para a Rocco nos anos 1990, época em que os textos da escritora foram consolidados e uma série de erros que tinham se acumulado em diferentes edições ao longo do tempo foram corrigidos.

Paulo Rocco, fundador da editora, teve contato com Clarice quando trabalhava na editora Sabiá, de Fernando Sabino e Rubem Braga (dois grandes amigos da escritora), e conhecia Valente de longa data.

Foi dele também a iniciativa de compartilhar parte do acervo da mãe em 2004 para o Instituto Moreira Salles (IMS).

Desde o fim dos anos 1970, o único guardião do acervo de Clarice era a Fundação Casa de Rui Barbosa, ligada ao Ministério da Cultura, onde estão cartas, documentos e recortes de jornais e revistas com o trabalho da escritora como jornalista.

O IMS recebeu manuscritos originais e datilografados, correspondências e cadernos, um acervo hoje acessível remotamente a pesquisadores de todo o mundo e constantemente divulgado em exposições e eventos.

A escritora tem um site dedicado a ela e todo 10 de dezembro ganha um evento comemorativo — neste ano, um podcast com cinco episódios em que especialistas conversam sobre a obra e a vida de Clarice, detalha Bruno Cosentino, da área de literatura do instituto.

Clarice Lispector em banca de frutas com o filho Paulo
Acervo Instituto Moreira Salles
Clarice com o filho Paulo Gurgel Valente no bairro do Leme, no Rio de Janeiro

Rachel Valença, coordenadora do acervo de literatura do IMS, conta que foi Valente que levou a eles o material em vídeo que deu origem ao minidocumentário Dias de Clarice em Washington, divulgado no último mês de setembro com depoimentos de Valente.

"Ele recebeu uma mensagem de alguém do CPDOC [Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas] dizendo que tinha um vídeo no arquivo do Amaral Peixoto em que aparecia a Clarice bem rapidamente e o próprio Paulo pequenininho", relata.

"A imagem da Clarice em movimento é uma coisa rara. Até muito pouco tempo só existia uma entrevista que ela deu meses antes de morrer pra TV Cultura", diz Valença, referindo-se ao célebre registro de 1977 em que a escritora está visivelmente desconfortável e dá respostas mal-humoradas.

A autora pediu que a entrevista só fosse ao ar depois que ela morresse. Seu desejo foi atendido.

A gravação foi durante muito tempo a única imagem que os leitores de Clarice tinham dela se expressando, e contribuiu para reforçar a aura de enigmática que se criou em torno de sua figura.

No ano passado, também por intermédio de Valente, uma entrevista que passou décadas esquecida no acervo do Museu da Imagem e Som (MIS) foi recuperada e divulgada, simultaneamente em inglês, na revista New Yorker (com um texto escrito por Benjamin Moser), e em português, na revista Quatro Cinco Um.

A conversa de pouco mais de 45 minutos é uma janela para outro ângulo de Clarice, falante e risonha.

BBC
Camilla Veras Mota - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 10/12/2024 06:56 / atualizado em 10/12/2024 11:57
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