Síria

Sírios relatam sonhos de um país livre: "Sem Al-Assad, é hora da cura"

Vítimas do regime de Bashar Al-Assad almejam a construção de uma nação livre e próspera. Ao Correio, elas detalham os horrores do regime e descartam o receio de um governo fundamentalista islâmico

Moradores de Damasco celebram a queda de Al-Assad com uma grande bandeira da oposição síria, na Praça Umayyad  -  (crédito: Omar Haj Kadour/AFP)
Moradores de Damasco celebram a queda de Al-Assad com uma grande bandeira da oposição síria, na Praça Umayyad - (crédito: Omar Haj Kadour/AFP)

Em 2015, Yusra Mardini, então com 17 anos, e a irmã Sara, 20, puxaram um bote com 16 pessoas no braço, enquanto nadavam no Mar Egeu, durante a fuga da guerra civil na Síria. Elas salvaram a vida de todos, e a história foi inspiração para o filme As nadadoras, exibido na Netflix. Yusra disputou as Olimpíadas do Rio (2016) e de Tóquio (em 2020). As marcas do regime de Bashar Al-Assad estão na pele, mas também na alma, de Amin Al-Lababidi, 57 anos. Um joelho quebrado, sequelas de um enfarte, traumas psicológicos e cicatrizes por todo o corpo. Wedian Eltarabulsi, 40, ainda se recorda de quando a filha Alaa, então com 8 anos, foi ferida em um bombardeio ao bairro de Ghouta. Muhammad Najem, 22, estava no mesmo local, em 21 de agosto de 2013, quando as forças de Al-Assad lançaram um ataque químico no meio da madrugada. Filha de sírios, Maryam Kamalmaz, 39, ainda sonha com a possibilidade de o pai, Majd Kamalmaz, ser encontrado com vida em uma das masmorras de Damasco. Em 2017, ele foi sequestrado pelos homens de Al-Assad e, desde então, a família não tem notícias concretas, exceto uma informação, do governo dos EUA, de que Majd teria sido executado. O Correio entrevistou as cinco vítimas da tirania de Damasco. Alegria, felicidade incontida, esperança, alívio e otimismo são sentimentos compartilhados por elas. As entrevistas foram transformadas em depoimentos na primeira pessoa. 

"Minha esperança é de uma Síria para todos os sírios"

"Como refugiada, sou uma dos milhões de sírios forçados a fugir de suas casas. Acompanhar as notícias tem sido avassalador. É um momento pelo qual todos esperávamos, depois de anos de dor e de perdas inimagináveis. Esperamos que as mudanças possam levar ao fim da maior crise de deslocamento do mundo, que afetou 13 milhões de sírios em 14 anos.

As decisões sobre o  retorno à Síria são profundamente pessoais e exigem tempo para avaliar a segurança e as condições no terreno. Qualquer regresso tem que ser voluntário, seguro e digno. Estamos focados em avaliar o que as mudanças significam para o nosso futuro e a nossa habilidade de reconstruir nossas vidas.

Yusra Mardini, 26 anos, nadadora síria, atleta olímpica no Rio (2016) e em Tóquio (2020). Em 2015, ela e a irmã Sara fugiram da Síria em um bote com 18 pessoas
Yusra Mardini, 26 anos, nadadora síria, atleta olímpica no Rio (2016) e em Tóquio (2020). Em 2015, ela e a irmã Sara fugiram da Síria em um bote com 18 pessoas (foto: Lisa Knauer )

Famílias foram despedaçadas; pais e mães perderam seus filhos. Cada sírio tem lutado, sacrificado e suportado dor e perda ao longo dos últimos 14 anos. Continuamos a aspirar um amanhã melhor — uma Síria para todos os sírios, com liberdade, segurança e dignidade."

Yusra Mardini, 26 anos, nadadora síria, atleta olímpica no Rio (2016) e em Tóquio (2020). Em 2015, ela e a irmã Sara fugiram da Síria em um bote com 18 pessoas. Ante o risco de naufrágio, por causa da superlotação, elas entraram na água e empurraram o bote por três horas até chegarem à costa. Sua história inspirou o filme As nadadoras (exibido na Netflix)

"Fui torturado por sete dias que equivalem a sete décadas "

"Em 15 de agosto de 2013, fui preso pelo regime de Al-Assad, com o meu cunhado, Hassan Muhammad Zuhair Zakaria. Fomos levados a um centro de segurança militar conhecido como 'centro da morte'. Ali, fui espancado e torturado. Ainda trago marcas em meu corpo. Fui golpeado com canos e com fios elétricos. Eles alternavam as sessões de tortura entre mim e Hassan, irmão da minha esposa. A surra me causou vários danos, inclusive um ataque cardíaco, do qual ainda sofro sequelas. Também fui submetido a vários insultos e violações de minha dignidade. Além das cicatrizes, fraturaram o meu joelho, e minha articulação teve que ser substituída. Os sete dias de torturas equivalem a 70 anos.

Amin Al-Lababidi, 57 anos, gerente de companhia farmacêtica, morador de Damasco
Amin Al-Lababidi, 57 anos, gerente de companhia farmacêtica, morador de Damasco (foto: Arquivo pessoal )

Não acho que Mohammed Al-Jawlani (líder dos rebeldes) tenha uma ideologia jihadista. Porque ele nos trata com o máximo respeito e não impôs nada que pudesse prejudicar nossa dignidade. Não espero nada dele além de paz e de bondade. A situação, hoje, em Damasco, é boa e estável. A capital está sob toque de recolher das 16h às 5h. Eu espero um futuro melhor e seguro para o nosso povo. Sinto alegria e alívio pela queda de Bashar Al-Assad, um tirano, traidor, opressor, um canalha que só se importava consigo mesmo e com o cargo que ocupava."

Amin Al-Lababidi, 57 anos, gerente de companhia farmacêutica, morador de Damasco

"Estamos chorando, felizes, nas nuvens e sem acreditar"

"São dias históricos para todos os sírios. Não poderíamos imaginar que estaríamos livres de todo o tipo de opressão e de injustiça, ao longo desses 14 anos, sob o regime de Al-Assad. No momento em que falo com vocês, estamos chorando, felizes, sem acreditar em tudo o que está ocorrendo. Estamos nas nuvens, não conseguimos descrever os nossos sentimentos. A Síria será um país democrático para todos os sírios. Inclusive para aqueles que sofreram com a pobreza, a desnutrição e com todo o tipo de necessidades diárias. 

Wedian Eltarabulsi, 40 anos, moradora de Ghouta, bairro de Damasco que foi alvo de ataque químico, em 201. Mãe de Noor (17 anos) e de Alaa (14).
Wedian Eltarabulsi, 40 anos (C), moradora de Ghouta, bairro de Damasco, com as filhas Noor (17 anos) e Alaa (14). (foto: Arquivo pessoal )

Durante o período em que Ghouta Oriental, nosso bairro, foi sitiado, tivemos dois episódios de violência cometidos pelos homens de Bashar Al-Assad. O primeiro foi um ataque com armas químicas, em 2013. Foram momentos mortíferos, em que milhares de pessoas foram assassinadas. O segundo incidente foi ainda pior. Al-Assad costumava cometer crimes atirando barris com explosivos sobre nossas cabeças, sem qualquer misericórdia. Chamamos esse episódio de 'Holocausto de Ghouta'. Quando ele ocorreu, fomos retirados de nossas casas e embarcados em ônibus verdes, em direção à cidade de Idlib."

Wedian Eltarabulsi, 40 anos, moradora de Ghouta Oriental, bairro de Damasco que foi alvo de ataque químico, em 2013. Mãe de Noor (17 anos) e de Alaa (14). Aos 8 anos, em 2018, Alaa ficou ferida no rosto, por um bombardeio do Exército sírio 

"O futuro trará muitas dificuldades para o meu povo"

"Estou refugiado em Istambul, na Turquia, desde 2019. Têm sido anos muito difíceis, e espero que as coisas melhorem. Não durmo bem há dias. Não sou o único, pergunte a qualquer sírio, ele dirá o mesmo. Ver nosso país livre é inacreditável. Depois de 14 anos, os sírios podem falar, viver em segurança, ter direitos iguais e um Estado que os protege. Temos um lugar para voltar com segurança, sem medo de desaparecimento forçado ou de prisão. É hora de o povo sírio regressar, para reconstruir a pátria. O futuro trará muitas dificuldades. 

Muhammad Najem, 22 anos, ativista dos direitos humanos de Ghouta (Damasco), exilado na Turquia
Muhammad Najem, 22 anos, ativista dos direitos humanos de Ghouta (Damasco), exilado na Turquia (foto: Arquivo pessoal )

A nova fase exigirá esforço, trabalho e tempo. A Síria será muito mais bonita. Nós a reconstruiremos. A descrição de jihadistas ou terroristas não se aplica aos sírios que lutam por sua terra. Há um equívoco de que eles matarão civis e aterrorizarão minorias e não muçulmanos. A realidade é o oposto. Vocês podem vir à Síria e ver a alegria em todas as cidades. 

Em 21 de agosto de 2013, eu estive na 'noite do julgamento', em Ghouta Oriental, bairro de Damasco. A noite em que a vida foi sufocada e o tempo parou, exceto para a morte. Al-Assad bombardeou-nos com armas químicas. Entre 1,4 mil e 1,5 mil pessoas morreram, muitas enquanto dormiam. Quem sobreviveu ficou com a memória sufocando o que restou de suas almas."

Muhammad Najem, 22 anos, ativista de Ghouta (Damasco), exilado na Turquia 

"Sem Al-Assad, é hora da cura e da recuperação de meu país"

"Meus sentimentos de alegria absoluta são indescritíveis! Não temos dormido, nem comido direito, ante tanta excitação e comemoração! É um momento que nunca pensamos que veríamos em nossa vida! Mas aqui está!!! Meu pai era um terapeuta sírio-americano que viajou para Damasco em 2017. Menos de 24 horas depois da chegada à capital, ele foi sequestrado pelo regime. Somente em maio deste ano, o governo dos EUA confirmou que ele foi torturado e morto pelos homens de Al-Assad. Nós, como família, gostaríamos de manter a esperança de que ele possa estar em uma das prisões.

Maryam Kamalmaz, 39 anos, filha de sírios, moradora de Dallas (Texas)
Maryam Kamalmaz, 39 anos, filha de sírios, moradora de Dallas (Texas) (foto: Arquivo pessoal )

Eu nunca vivi na Síria. Nasci nos EUA, mas fui proibida de entrar na Síria, simplesmente porque falava sobre a verdade, sobre o que ocorreu ao meu pai nas mãos do regime sírio. Ninguém ousava falar contra Al-Assad. Se alguém o fizesse, seria preso, torturado e até mesmo executado. A libertação da Síria me trouxe a esperança renovada de que poderei visitar o país de origem da minha família.

Eu rezo por um governo limpo, que traga a liberdade e a paz. Onde todos nós, de diferentes seitas e religiões, possamos viver em paz. O povo sírio ficou traumatizado. É hora da cura e da recuperação. Rezo para que as autoridades implementem a paz. Ao contrário do antigo regime, que foi brutal e tirânico."

Maryam Kamalmaz, 39, filha de sírios, moradora de Dallas (Estados Unidos)

  • Maryam Kamalmaz, 39 anos, filha de sírios, moradora de Dallas (Texas)
    Maryam Kamalmaz, 39 anos, filha de sírios, moradora de Dallas (Texas) Foto: Arquivo pessoal
  • Wedian Eltarabulsi, 40 anos, moradora de Ghouta, bairro de Damasco que foi alvo de ataque químico, em 201. Mãe de Noor (17 anos) e de Alaa (14).
    Wedian Eltarabulsi, 40 anos (C), moradora de Ghouta, bairro de Damasco, com as filhas Noor (17 anos) e Alaa (14). Foto: Arquivo pessoal
  • Amin Al-Lababidi, 57 anos, gerente de companhia farmacêtica, morador de Damasco
    Amin Al-Lababidi, 57 anos, gerente de companhia farmacêtica, morador de Damasco Foto: Arquivo pessoal
  • Muhammad Najem, 22 anos, ativista dos direitos humanos de Ghouta (Damasco), exilado na Turquia
    Muhammad Najem, 22 anos, ativista dos direitos humanos de Ghouta (Damasco), exilado na Turquia Foto: Arquivo pessoal
  • Yusra Mardini, 26 anos, nadadora síria, atleta olímpica no Rio (2016) e em Tóquio (2020). Em 2015, ela e a irmã Sara fugiram da Síria em um bote com 18 pessoas
    Yusra Mardini, 26 anos, nadadora síria, atleta olímpica no Rio (2016) e em Tóquio (2020). Em 2015, ela e a irmã Sara fugiram da Síria em um bote com 18 pessoas Foto: Lisa Knauer
postado em 10/12/2024 06:05
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