Após 24 anos no poder na Síria, o presidente Bashar al-Assad foi deposto ontem pela aliança rebelde síria liderada por grupos islâmicos, que assumiu o controle de Damasco em uma ofensiva relâmpago. A família do ditador comandava desde 1971. Ele deixou o país junto com a mulher e os filhos rumo a Moscou, conforme a agência pública russa Interfax. O palácio onde vivia foi invadido e saqueado, objetos de valor foram furtados. Uma outra residência dele também sofreu ataques e foi incendiada.
O líder do grupo Hayat Tahrir al Sham (HTS), Abu Mohammad al Jolani, disse que se empenhará para formar um governo de coalizão. Afirmou ainda que atuará para unir a Síria em uma gestão "para todos". O país sofre com várias divisões internas nos campos étnico, religioso, político e ideológico.
Paralelamente à fuga de Assad para Moscou com apoio do governo do presidente Vladimir Putin, a Rússia recebe apoio dos rebeldes. Segundo a AFP, as bases militares russas na Síria estão seguras. "(A Rússia) está em contato com representantes da oposição armada, cujos líderes garantiram a segurança das bases do exército russo e das instituições diplomáticas no território da Síria", informaram as agências estatais TASS e Ria Novosti.
Domínio
No Telegram, o jihadista Hayet Tahrir al-Sham (HTS) anunciou o controle de Damasco, a capital, e a retirada das forças sírias. Em seguida, um grupo de rebeldes fez um pronunciamento na TV estatal. Dirigindo-se à população, um soldado leu: "A cidade de Damasco foi libertada, o tirano Bashar al-Assad, deposto. Depois de 50 anos de opressão sob o partido governista Baath, e 13 anos de crimes, tirania e deslocamento [desde o início de um levante popular em 2011, que foi seguido por uma guerra civil], anunciamos hoje o fim dessa era obscura e o começo de uma nova era para Síria". Em seguida, acrescentou: "Vida longa a Síria independente e livre para todas as suas seitas".
A queda de Damasco foi o desfecho da ofensiva iniciada em 27 de novembro pelo líder do HTS, Abu Mohammed al-Jolani, na fronteira com a Turquia. Inicialmente, os rebeldes tomaram o controle da maior cidade Síria, Aleppo, para depois, avançarem para Hama, a terceira maior, e a estratégia cidade de Homs, em rota para a capital.
Ontem, o líder visitou de surpresa a Mesquita de Omíadas, a maior da capital, onde foi recebido por uma multidão. Ele voltou a usar seu nome de batismo Ahmed al-Sharaa. Jolani dirigiu-se à multidão, que gritava "Allahu akbar (Deus é grande)", de acordo com um vídeo compartilhado pelos rebeldes em seu canal do Telegram. Antes, passou por pontos estratégicos - ruas onde estão instituições governamentais, como o quartel-general do Estado-Maior e a televisão estatal. Lá, ele rezou.
Jolani pediu a seus homens que não se aproximem das instituições públicas, assegurando que permaneceriam sob a autoridade de Mohammed Ghazi al-Jalali, primeiro-ministro deposto do regime, até a "transferência oficial" de poder. Jalali prometeu cooperar com os rebeldes.
Vítimas
Ao menos 910 pessoas, incluindo 138 civis, morreram na Síria desde a ação dos rebeldes contra o governo Assad, que se intensificou em novembro. Apesar do clima de tensão e incerteza, muitos celebram o fim da Era Assad. "Esperávamos por este dia há muito tempo", disse Amer Batha à AFP de uma praça na capital síria, onde o barulho dos tiros em sinal de alegria se misturava com os gritos de "Allahu Akbar" ("Deus é grande").
Nos últimos dias, os rebeldes avançaram o domínio sobre as principais cidades sírias. Anteontem chegaram a Aleppo, Hama e Homs, deixando Damasco sitiada. Informações, não confirmadas oficialmente, indicavam que militares sírios vinham abandonando seus postos, abrindo a guarda. A coalizão rebelde liderada pelo HTS, um grupo vinculado à Al Qaeda, avançou muito em dez dias, obtendo conquistas espetaculares ao controlar áreas específicas.
Saiba Mais
Quem é o ditador
Há 24 anos, o presidente Bashar al-Assad está no poder na Síria, "herdou" o cargo do pai Hafez, que dirigiu o país por mais de duas década, embora o chamado "herdeiro natural" fosse o irmão mais velho dele, Bassez, morto em um acidente de trânsito, em 1994. No comando com mãos de ferro, o sírio reprimiu com violência a revolta pró-democracia em 2011, a Primavera Árabe, que virou uma das guerras mais sangrentas do século. Desde então, eclodiu no país uma guerra civil com várias nuances próprias: disputas étnicas, religiosas e ideológicas.
Médico oftalmologista, Assad estudou em Londres e por anos. Era considerado um aluno brilhante e com futuro promissor. Lá conheceu a mulher, Asa, filha de um médico renomado, com quem teve três filhos - dois meninos e uma meninada. Considerado inteligente, culto e preparado, por anos apresentou-se como o protetor das minorias sírias, baluarte contra o extremismo e único provedor possível de estabilidade para um país devastado pela guerra. Nas várias eleições organizadas ao longo dos anos, era o mais votado.
Porém, as eleições realizadas apenas em territórios controlados pelo governo, foram consideradas irregulares pelas potências ocidentais e grupos de direitos humanos. Toru-se especialista militar e impôs um regime fechado no país: qualquer suspeita de dissidência poderia levar à rigorosa repressão.
Em 2011, quando houve a Primavera Árabe estourou a revolta, Assad impôs forte reação. O conflito armado se instalou no país, deixando mais de 500.000 mortos e provocou o deslocamento de metade da população. Mas a posição sobre os manifestantes e a oposição não mudou. Para o mundo, o pai de família justificou a necessidade de reagir aos "terroristas". Houve numerosas prisões e denúncias de abusos.
A gestão de Bashar al-Assad foi marcada por episódios de violência, opressão, desrespeito aos direitos humanos e muita repressão. Para se sustentar, contou com apoio da Rússia e do Irã de forma intensa. Vez por outra, países, como os Emirados Árabes se apresentavam para ajudá-lo. No entanto, o Líbano se manteve distante, embora vizinho e com as mesmas raízes históricas.
O líder dos rebeldes
LEG: O líder Abu Mohammed al-Jolani é aclamado pela multidão: “Allahu akbar (Deus é o maior)”
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De origem rica, estudou nos melhores e mais caros colégios de Damasco, Abu Mohammed al Jolani, o líder da aliança rebelde islâmico, de 42 anos, é apontado como o responsável pela queda do regime do presidente Bashar al-Assad. Extremista, ele adotou uma posição mais moderada para alcançar seus objetivos. À frente do grupo Hayat Tahrir al Sham (HTS), que tem origem no braço sírio da Al Qaeda, Jolani afirmou desde o início que o objetivo de sua ofensiva era derrubar Assad.
Durante anos, o líder rebelde agiu nas sombras. Mas, nos últimos meses, assumiu os holofotes, dando entrevistas a veículos internacionais e deixando-se ver na segunda maior cidade da Síria, Aleppo. Com o passar dos anos, ele também parou de usar o turbante habitual dos jihadistas e deu preferência à vestimenta militar.
Desde que rompeu relações com a Al Qaeda em 2016, Jolani se colocar como mais moderado. Porém, não convence totalmente a comunidade internacional. "É um radical pragmático", afirmou à AFP Thomas Pierret, especialista em política islâmica. "Em 2014, estava no auge de sua radicalização", explica, em alusão ao período da guerra em que tentou rivalizar com o grupo extremista Estado Islâmico. "Desde então, moderou sua retórica", acrescenta.
Segundo ele, seu nome de guerra evoca suas raízes familiares nas Colinas de Golã, de onde seu avô teve que fugir após a anexação israelense da região, em 1967. De acordo com o portal de notícias Middle East Eye, Jolani começou a se sentir atraído pela retórica jihadista depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, quando começou a "assistir a sermões e debates clandestinos em subúrbios marginais de Damasco".
Depois da invasão norte-americana ao Iraque, o agora líder rebelde deixou a Síria para participar dos combates. Ali, uniu-se à Al Qaeda no Iraque, e passou cinco anos preso, o que o impediu de galgar posições na organização jihadista. Em março de 2011, quando explodiu a revolta contra Bashar al-Assad, voltou para seu país e fundou a Frente Al Nusra, braço sírio da Al Qaeda.