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Malala: 'Nunca pensei que mulheres perderiam seus direitos tão facilmente'

Malala Yousafzai é produtora executiva de documentário que acompanha a vida de três mulheres afegãs sob o regime do Talebã.

Os direitos das mulheres no Afeganistão sofreram um retrocesso acentuado desde que o Talebã retomou o poder em 2021 -  (crédito: Getty Images)
Os direitos das mulheres no Afeganistão sofreram um retrocesso acentuado desde que o Talebã retomou o poder em 2021 - (crédito: Getty Images)

Uma bala não foi capaz de silenciá-la, e agora Malala Yousafzai está emprestando sua voz às mulheres do Afeganistão.

Em apenas alguns anos desde que o Talebã retomou o controle do país, os direitos das mulheres retrocederam a ponto de até mesmo o canto ser proibido.

Malala tem uma história pessoal com o Talebã do outro lado da fronteira, no Paquistão, depois que um homem armado do grupo fundamentalista islâmico atirou nela dentro de um ônibus escolar.

A velocidade das mudanças no Afeganistão surpreendeu Malala, que desde aquele disparo quase fatal em 2012 tem feito campanha pela igualdade.

"Nunca imaginei que os direitos das mulheres seriam comprometidos tão facilmente", disse Malala à emissora de rádio Asian Network, da BBC.

"Muitas meninas se encontram em uma situação desesperadora e deprimente, na qual não veem nenhuma saída", diz a vencedora do Prêmio Nobel, de 27 anos.

"O futuro parece muito sombrio para elas."

O retrocesso

Uma mulher caminhando no Afeganistão
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Os direitos das mulheres no Afeganistão sofreram um retrocesso acentuado desde que o Talebã retomou o poder em 2021

Em 2021, o Talebã retomou o poder no Afeganistão, 20 anos depois de uma invasão liderada pelos EUA ter derrubado seu regime na sequência dos ataques de 11 de setembro em Nova York.

Nos três anos e meio desde que as forças ocidentais deixaram o país, as chamadas "leis da moralidade" fizeram com que as mulheres no Afeganistão perdessem dezenas de direitos.

De acordo com o código de vestimenta, elas devem estar totalmente cobertas, enquanto outras regras as proíbem de viajar sem um acompanhante do sexo masculino ou de olhar um homem nos olhos, a menos que sejam parentes de sangue ou casados.

"As restrições são tão extremas que não fazem sentido para ninguém", diz Malala.

A Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que as regras equivalem ao "apartheid de gênero"— um sistema em que as pessoas enfrentam discriminação econômica e social com base em seu sexo —, algo que o grupo de direitos humanos Anistia Internacional quer que seja reconhecido como crime no âmbito do direito internacional.

Mas as regras foram defendidas pelo Talebã, que afirma que elas são aceitas na sociedade afegã, e que a comunidade internacional deve respeitar "as leis islâmicas, as tradições e os valores das sociedades muçulmanas".

Mulher com a mão na frente do rosto, com uma mensagem de apoio às mulheres afegãs escrita na palma da sua mão
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Malala é produtora executiva de um documentário que acompanha a vida de três mulheres afegãs à medida que seus direitos são retirados

"As mulheres perderam tudo", diz Malala. "Eles [o Talebã] sabem que para tirar os direitos das mulheres é preciso começar pela base, que é a educação."

A ONU afirma que, desde a retomada do poder pelo Talebã, mais de um milhão de meninas não estão frequentando a escola no Afeganistão (cerca de 80%) — e, em 2022, aproximadamente 100 mil estudantes do sexo feminino foram proibidas de fazer curso universitário.

Também foi noticiada uma correlação entre a falta de acesso à educação e o aumento do casamento infantil e das mortes durante a gravidez e o parto.

"As mulheres afegãs vivem em tempos muito sombrios agora", afirma Malala. "Mas elas mostram resistência."

Mostrando a realidade

A ativista nascida no Paquistão, que se tornou a pessoa mais jovem a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, é produtora executiva do recém-lançado Pão, Rosas e Liberdade, documentário que registra a vida de três mulheres afegãs sob o regime do Talebã.

O documentário acompanha Zahra, uma dentista forçada a abandonar seu consultório; a ativista Taranom, que foge para a fronteira; e a funcionária pública Sharifa, que perde seu emprego e independência.

Malala diz que o filme não é apenas sobre as histórias das três mulheres. "É sobre as 20 milhões de meninas e mulheres afegãs cujas histórias podem não chegar às nossas telas."

Pão, Rosas e Liberdade foi dirigido pela cineasta afegã Sahra Mani, e a atriz americana Jennifer Lawrence também participou do projeto como produtora.

Homens do Talebã revisando livros para proibir
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O Talebã está limitando os direitos básicos da população, incluindo a proibição da grande maioria dos livros

Sahra disse à rádio Asian Network, da BBC, que sua missão era "contar a história de uma nação sob a ditadura do Talebã".

"Como, aos poucos, todos os direitos foram sendo retirados".

A cineasta conseguiu fugir do Afeganistão depois que o governo apoiado pelos EUA entrou em colapso após a retirada das tropas em agosto de 2021.

Mas ela manteve contato com as mulheres de seu país, que compartilhavam vídeos que ela reunia e arquivava.

"Foi muito importante encontrar mulheres jovens, modernas e instruídas que tivessem talento e estivessem prontas a dedicá-lo à sociedade", diz Sahra.

"Elas estavam prontas para construir o país, mas agora têm que ficar em casa, e não podem fazer quase nada."

Mulheres protestando contra o Talebã no Afeganistão
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A atriz americana Jennifer Lawrence produziu o filme que, segundo ela, é sobre 'a natureza da resistência'

Sahra acredita que a situação no Afeganistão já se deteriorou a tal ponto que seria impossível realizar o filme se começasse agora.

"Naquela época, as mulheres ainda podiam sair e se manifestar", diz ela.

"Hoje em dia, as mulheres não podem nem cantar... a situação está ficando mais difícil."

Imagens do documentário mostram as mulheres em protestos — elas não paravam de gravar enquanto eram presas pelo Talebã.

E Sahra conta que o projeto só se tornou mais difícil com o passar do tempo, à medida que mais direitos eram retirados.

"Ficamos muito honradas por essas mulheres terem confiado em nós para compartilhar suas histórias", diz ela.

"E, para nós, era muito importante colocar a segurança delas entre nossas prioridades."

"Mas quando elas saíram às ruas pedindo seus direitos, não era para o documentário."

"Era por elas, por sua própria vida, por sua própria liberdade."

Rebeldia

Mulheres afegãs sentadas no chão conversando e se divertindo
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O Talebã foi deposto quando as tropas lideradas pelos EUA invadiram o Afeganistão em 2001, mas retomou o poder 20 anos depois

Malala observa que, para as mulheres no Afeganistão, "a rebeldia é algo extremamente desafiador".

"Apesar de todos esses desafios, elas estão nas ruas, e arriscam suas vidas na esperança de um mundo melhor para elas."

As três mulheres apresentadas no documentário não vivem mais no Afeganistão, e Sahra e Malala esperam que o filme aumente a conscientização sobre o que as mulheres que permanecem no país enfrentam.

"Elas estão fazendo tudo o que podem para lutar por seus direitos, para levantar sua voz", diz Malala. "Elas estão colocando muita coisa em risco. É nossa hora de sermos suas irmãs e apoiá-las."

Malala também espera que o documentário gere mais pressão internacional sobre o Talebã para restabelecer os direitos das mulheres.

"Fiquei completamente chocada quando vi a realidade da retomada do poder pelo Talebã", afirma.

"Nós realmente temos que questionar que tipo de sistemas estabelecemos para garantir a proteção das mulheres no Afeganistão, e também em outros lugares."

Malala falando com microfone na mão ao lado de Sahra
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Sahra (à direita) diz estar grata por Malala ter 'compartilhado sua plataforma' com as mulheres no Afeganistão

E por mais que Pão, Rosas e Liberdade trate de histórias de perda e opressão, o filme também é sobre resiliência e esperança.

"Temos muito para aprender com a bravura e a coragem destas mulheres afegãs", diz Malala.

"Se elas não estão com medo, se não estão perdendo a coragem de enfrentar o Talebã, devemos aprender com elas e nos solidarizar com elas."

O próprio título do documentário foi inspirado em um ditado afegão.

"O pão é um símbolo de liberdade, de ganhar um salário e sustentar a família", explica Sahra.

"Temos um ditado na minha língua que diz que aquele que te deu o pão é aquele que te dá ordens", diz. "Portanto, se você conseguir seu pão, isso significa que você é seu próprio chefe."

Esse é exatamente o futuro que ela almeja para as mulheres do Afeganistão e, com base no que viu, acredita que elas vão conseguir no final.

"As mulheres no Afeganistão continuam mudando de tática", ela observa. "Elas continuam buscando uma nova maneira de continuar lutando."

*Reportagem adicional de Riyah Collins

BBC
Amber Sandhu e Kulsum Hafeji - BBC Newsbeat
postado em 07/12/2024 21:26
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