América do Sul

Argentina: No primeiro ano de governo, Milei aproveita lua-de-mel

Presidente ultralibertário chega ao primeiro ano de governo com a popularidade em alta, depois de controlar a inflação, mesmo a um elevado custo social. Especialistas avaliam os pontos positivos e negativos da gestão

Javier Milei dança durante apresentação de seu livro Capitalismo, socialismo e a arnadilha neoclássica, em estádio de Buenos Aires  -  (crédito: Luis Robayo/AFP)
Javier Milei dança durante apresentação de seu livro Capitalismo, socialismo e a arnadilha neoclássica, em estádio de Buenos Aires - (crédito: Luis Robayo/AFP)

Em 10 de dezembro de 2023, o ultralibertário Javier Milei tomava posse como o 12º presidente da Argentina e prometia usar a famosa "motosserra" contra o establishment, do qual se considera um inimigo. "Vamos tomar todas as decisões necessárias para resolver o problema causado por 100 anos de desperdício da classe política", prometeu, ao receber a faixa presidencial. Na ocasião, Milei prometeu avançar nas mudanças de que o país necessita. "Temos a certeza de que abraçar as ideias de liberdade é a única forma de conseguirmos sair do buraco em que fomos colocados", afirmou, em crítica indireta ao peronismo e ao antecessor, Alberto Fernández.

No primeiro ano de governo, completado nesta terça-feira  (10/12), Milei conseguiu freiar a eleição e manter a popularidade em alta. "Em 2023, a inflação anual da Argentina subiu para 210%. Hoje, chega a 110%. Este foi um ponto positivo de seu governo", admitiu ao Correio Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA). "Outro ponto positivo, ao menos sob a perspectiva do governo, foi que ele conseguiu reduzir a inflação sem grandes protestos ou conflitos sociais e, por fim, sem recorrer à repressão nas ruas."  

Segundo De Luca, o controle inflacionário produziu custos sociais, ao esfriar a economia. "Houve aumento da pobreza, uma drástica redução das expectativas de crescimento e de desenvolvimento econômico. Outra façanha do governo foi a aprovação, por parte do Congresso, de itens importantes do programa econômico de Milei, apesar de o presidente contar com minoria de legisladores", observou. 

Milei empunhou a "motosserra" contra o próprio Estado. Enxugou ministérios, repartições públicas e fundos orçamentários voltados a obras públicas e ao cuidado de setores vulneráveis da sociedade. De Luca afirma que o presidente também usou o liquidificador, ao não aumentar as pensões e ao não ampliar os salários do funcionalismo público, como os professores universitários. "De fato, o ajuste consistiu mais em um 'liquidificador' do que em uma 'motosserra'", disse o professor. Na última sexta-feira, Milei assumiu a presidência rotativa do Mercosul.

Colega de universidade, a cientista política Fanny Maidana concorda com De Luca que um dos grandes êxitos do atual governo foi a forte redução nos índices de inflação. "Antes da chegada de Milei, a Argentina enfrentava um forte processo de aceleração da inflação, inclusive durante o último ano do governo de Alberto Fernández. O peso, de acordo com as estatísticas, é uma das moedas que mais valorizou em 2024. É claro que o lado oposto disso está no encarecimento do custo de vida, em comparação com Brasil. Uruguai e Chile", disse ao Correio a também professora da Universidad Nacional del Litoral, na cidade de Santa Fé.

Aborto e união gay

"Na contramão, Milei revisou questões consideradas resolvidas. Ele propôs a rediscussão da interrupção voluntária da gestação, do casamento igualitário e do financiamento universitário. Estamos em um forte questionamento frente à redução da cobertura de medicamentos para aposentados", acrescentou Maidana.

Aposentados e polícia de choque entram em confronto em Buenos Aires, após governo cancelar distribuição de medicamentos
Aposentados e polícia de choque entram em confronto em Buenos Aires, após governo cancelar distribuição de medicamentos (foto: Marcos Brindicci/AFP)

Por sua vez, Carlos Fara — presidente da Associação Internacional de Consultores Políticos (em Buenos Aires) — explicou à reportagem que Milei consolidou-se politicamente, mesmo na condição de presidente mais frágil, politicamente, desde 1983. "Ele manteve a governabilidade com um esquema econômico que resistiu, ao reduzir a inflação e ao canalizar créditos para a Argentina. No entanto, uma das coisas que mais preocupa no governo Milei é o custo social das medidas tomadas pelo chefe de Estado. Ele tem um esquema político pouco afeito às instituições. Causa mal-estar a excessiva confrontação ante a liquidação de oportunidades econômicas. Além disso, a política externa de Milei parece pouco profissional."

Segundo Maidana, a "motosserra" de Milei também atingiu os orçamentos de universidades e o financiamento de centros de investigação. "Ao mesmo tempo, o aumento salarial do funcionalismo público foi ínfimo, comparado à inflação", explicou. Ela lembrou que o governo Milei não reduziu impostos, uma das promessas de campanha. A especialista considera uma incógnita o modo com que Milei manterá as relações bilaterais com o Brasil e a China, dois dos principais sócios comerciais da Argentina."

EU ACHO...

Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires
Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (foto: Arquivo pessoal )

"A popularidade de Milei se mantém em alta. Ele conseguiu reduzir a inflação, ainda que a um custo social elevado, e estabilizou o dólar. Na Argentina, onde os problemas econômicos são recorrentes, o controle da inflação e do dólar um período de tempo considerável é sempre algo muito apreciado pelos eleitores. Há outros pontos a serem resolvidos, como a pobreza, o desemprego e a insegurança."

Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA)

Fanny Maidana, professor de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA)
Fanny Maidana, professor de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA) (foto: Fotos: Aquivo pessoal )

"Milei é um fenômeno bem particular. Em linhas gerais, é alvo de estudos da ciência política. Ele tem mostrado números contrários a uma tendência de duração cada vez menor da lua-de-mel do eleitorado com o presidente. A avaliação de Milei é bastante positiva, e a figura particular do presidente rende crédito e esperança por parte dos cidadãos. Isso tem a ver com a redução da inflação durante o seu governo. A gestão de Milei escolheu uma política de choque, sem perder a boa imagem entre os argentinos."

Fanny Maidana, professora de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA)

Carlos Fara, especialista em opinião pública em comunicação de governo, em Buenos Aires
Carlos Fara, especialista em opinião pública em comunicação de governo, em Buenos Aires (foto: Arquivo pessoal )

"Em 2023, a Argentina carregava uma herança de problemas de longa data. Milei teria que tomar medidas antipáticas e levaria muito tempo para a obtenção dos resultados. Essa era a base para ter uma paciência social frente a um remédio amargo. Depois de 12 anos de estancamento econômico, a sociedade argentina concedeu crédito a Milei. Sabia-se que ele era alguém sem experiência política e de gestão estatal. Esse cenário possibilitou que a 'motosserra' avançasse sem probemas."

Carlos Fara, presidente da Associação Internacional de Consultores Políticos (em Buenos Aires)

  • Aposentados e polícia de choque entram em confronto em Buenos Aires, após governo cancelar distribuição de medicamentos
    Aposentados e polícia de choque entram em confronto em Buenos Aires, após governo cancelar distribuição de medicamentos Foto: Marcos Brindicci/AFP
  • Fanny Maidana, professor de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA)
    Fanny Maidana, professor de ciência política na Universidad Nacional del Litoral e na Universidad de Buenos Aires (UBA) Foto: Fotos: Aquivo pessoal
  • Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires
    Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires Foto: Arquivo pessoal
  • Carlos Fara, especialista em opinião pública em comunicação de governo, em Buenos Aires
    Carlos Fara, especialista em opinião pública em comunicação de governo, em Buenos Aires Foto: Arquivo pessoal
postado em 09/12/2024 18:53
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