ELEIÇÕES NO URUGUAI

José 'Pepe' Mujica, o grande estrategista da campanha da esquerda

Mesmo doente, ex-presidente se sobressai no segundo turno das elelções como o principal articulador da candidatura de Yamandú Orsi, que enfrenta hoje o governista Álvaro Delgado nas urnas

"Estou lutando contra a morte. Estou no fim da partida, absolutamente convencido e consciente", afirmou José "Pepe" Mujica, 89 anos, durante comício de encerramento da campanha de Yamandú Orsi, candidato a presidente pelo partido Frente Ampla e seu afilhado político, em 19 de outubro. Sob as bênçãos do líder esquerdista que comandou o Uruguai entre 2010 e 2015, Orsi chega ao segundo turno, hoje, com chances reais de ocupar o principal posto do país, no gabinete da Torre Ejecutiva, em Montevidéu. "Sou um velho que está muito perto de empreender a retirada para o local de onde não se volta. Sou feliz. Quando meus braços se forem, haverá milhares de outros braços substituindo a luta", acrescentou Mujica, no evento. 

Com a saúde debilitada — depois de travar uma batalha contra o câncer de esôfago —, o ex-líder e fundador da guerrilha Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros (MLN) ainda mobiliza massas, graças ao carisma, à humildade e a frases de impacto que atacam a desigualdade social. "Temos que sair deste poço", clamou Mujica, em um spot publicitário de campanha, no qual, sem sua dentadura e muito abatido, reiterou que estava se "despedindo da vida".

Mujica adotou um protagonismo ainda mais evidente na reta final da corrida eleitoral. Atacou o governo de centro-direita do presidente Luis Lacalle Pou, defendeu a agricultura familiar e pregou um maior fortalecimento do papel do Estado na garantia da justiça social. Também discorreu sobre o sentido da vida, além de condenar o "consumo abominável". As mais recentes pesquisas apontam que Yamandú Orsi tem 47% das intenções de votos contra 46% para o governista Álvaro Delgado.

Depois de ser apelidado de "o presidente mais pobre do mundo", Mujica explicou que sua austeridade e a vida simples são reflexos dos 14 anos que passou na prisão, entre 1971 e 1985. Na última terça-feira, esbanjou autenticidade, ao receber fortes aplausos em um clube de Montevidéu. "Eu sei que o que estou dizendo soa mal e dói. Azar. Com quase 90 anos, ganhei o direito de dizer sinceramente o que penso", declarou.

Hóspede

Durante 10 dias, em maio de 2022, o jornalista, documentarista e fotógrafo argentino Fabián Restivo ficou imerso na rotina de Mujica, com quem desenvolveu uma amizade sólida ao longo de vários anos. Enquanto hóspede do Rincón del Cerro, sítio onde o ex-presidente vive com a esposa, Lucía Topolanski, a 30km de Montevidéu, ele pôde falar sobre vários assuntos com o líder de esquerda e reunir material para o documentário Conversas com Pepe Mujica — um segundo projeto, que sucedeu o livro Palavras para depois: conversas com Pepe Mujica.

Em entrevista ao Correio, Fabián, que assumirá a presidência da Fundacción Pepe Mujica, qualificou como "enorme" o legado do amigo. "É quase ecumênico", reconheceu. "O meu desespero dele é o de que a esquerda continental compreenda o seu pensamento." Mujica lhe confidenciou que, apesar de ser alvo de homenagens em todo o mundo, percebe que ninguém executa os seus pensamentos.

Segundo Fabián, Mujica é o que todos veem. "Algumas pessoas acham que ele encarna um personagem. Não, ele é assim mesmo. Trata-se de uma pessoa que viveu muito e que vive em um estado permanente de pensamento. Pepe se contradiz para procurar respostas e, de repente, acha as próprias respostas. Então, ele as confronta consigo mesmo. É uma pessoa que não somente pensou, mas também agiu conforme o seu pensamento", comentou.

A ideia de Fabián de fazer o livro e o documentário partiu uma sugestão de um amigo em comum dele e de Mujica, o ex-deputado Daniel Placeres. Os dez dias no sítio do ex-presidente renderam quase 70 horas de áudio. "Procurei retratar o pensamento universal dele: vai desde a coisa mais pequena — a qual ele acha que é a própria vida — até o raciocínio mais geral e de fácil compreensão."

Nascido em Porto Alegre e filho de uruguaios, Atahualpa Blanchet, 42, mora em Montevidéu desde 2018. "Minha função é construir uma ponte entre brasileiros e uruguaios. Fizemos uma série de atividades sobre o Mercosul na casa de Pepe Mujica e encontros com ele em outros espaços, inclusive com a presença de lideranças políticas brasileiras, como o ex-ministro das Cidades Olivio Dutra e o ex-governador Tarso Genro. Também estivemos na visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à casa do Pepe", contou ao Correio o pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). "Pepe é muito aberto e acessível, recebe as pessoas de braços abertos. É um exemplo de comportamento, coerência, retidão e simplicidade. Ao mesmo tempo, de consistência e profundidade."

Para Atahualpa, Mujica é uma referência. "Ele é uma maneira de viver, de constituir a vida para além das variáveis que envolvem o materialismo. Buscar, na prática, que o ser prepondere sobre o ter. Em certa medida, isso tem nos influenciado, também, na forma de viver e de enxergar os processos. Buscamos internalizar os ensinamentos dele."

De Fusca

Natural de Urussanga (SC), o professor, ator e músico Adriano Medeiros Marcírio, 31, sempre teve admiração por Mujica. Em 22 de maio de 2019, dois dias depois do 84º aniversário do ex-presidente, ele e dois amigos brasileiros estacionaram o Fusca azul em frente ao portão do sítio em Rincón del Cerro. A decisão sobre a visita tinha sido tomada em Montevidéu. "Saímos de Fusca de Florianópolis com a ideia de ir até o Alasca, passando pelo Ushuaia. Quando chegamos à capital uruguaia, resolvemos visitar o Mujica. Não sabíamos exatamente onde ele morava. Fomos até o Museu da República e conversamos com um dos seguranças. Ele nos contou que tinha uma amizade antiga com Mujica, desde a época em que foram presos, juntos. Aí ele nos mostrou, no GPS do celular, o local da chácara. A gente simplesmente entrou no Fusca e foi para lá", contou ao Correio. 

Ao chegarem até o sítio, os três também foram recebidos por um segurança. "Contamos que viemos do Brasil e que gostaríamos muito de conhecer o Pepe e de conhecer o Fusquinha dele. Esse era um ponto em comum que sabíamos que ele gostaria", relatou Adriano. "O vigilante voltou para a guarita e ficamos meia hora, na frente do Fusca, à espera. Depois desse tempo, ele pediu que estacionássemos o Fusca e aguardássemos Mujica. Entrei na guarita e Pepe estava ali o tempo todo, sentado em uma cadeirinha, 'bolando' um cigarro de tabaco. Ele estendeu a mão e pediu que ficássemos à vontade. Foi impactante dar de cara com uma figura tão forte como o Pepe."

Ao saber dos planos de viagem do trio, Mujica brincou: "Os brasileiros são loucos, mesmo". Com o comentário, quebrou o gelo. Vieram perguntas sobre o Fusca, o motor e as peças trocadas. "Foi um papo descontraído. Ele nos ofereceu mate e cigarro. Todo o tempo muito calmo e mostrando interesse na conversa." Para Adriano, o mais impactante foi sentir o "estado de presença" de Mujica. "Foi um privilégio absorver um pouco dos ensinamentos dele. O que me chamou a atenção foi olhar compenetrado, meio intimidador, até. É uma figura genial."

 

 

Mais Lidas

Gonzalo Pardo - Fabián Restivo visita Mujica no sítio: amizade que rendeu livro e documentário
Adriano Medeiros - Adriano (D) com Mujica (C): aventura em Rincón del Cerro
AFP - Former Uruguayan President José "Pepe" Mujica (R) smiles as he arrives at a campaign rally for Uruguay's presidential candidate for the Frente Amplio party, Yamandu Orsi, at Club Cerveceros in Montevideo on November 19, 2024. Uruguay's heads for the next November 24 election run-off, where a leftist history teacher supported by Mujica and a center-right veterinarian will duel for the presidency of Uruguay. (Photo by Santiago Mazzarovich / AFP) Caption

Eu acho...

"Passei dez dias com José Pepe Mujica e gravei quase 70 horas de áudio. O pensamento de Mujica é universal. Ele é muito leitor, estuda bastante, gosta disso. Mujica não consegue pensar, por exemplo, nos poderes do mundo e não pensar na importância das formigas na Terra. O arco de seu raciocínio é tão amplo que ele consegue ligar umas coisas às outras o tempo todo."

Fabián Restivo, jornalista argentino, fotógrafo, documentarista e amigo de José "Pepe" Mujica

 

"O legado do Mujica  é muito amplo. A história de resistência que ele tem, de representar a resistência humana por um ideal. Eu me refiro à época em que ele ficou 14 anos preso, durante a ditadura militar no Uruguai. Saiu de lá e continou com o ideal vivo, sem perder a essência e a força de fazer acontecer o que ele acreditava para o país dele."

Adriano Medeiros Marcírio, 31 anos, músico e ator, natural de Urussanga (SC), visitou Mujica a bordo de um Fusca