Quando Morgan Segui recobrou a consciência, ele concluiu que iria morrer.
Apenas três horas antes, ele havia sofrido uma queda gravíssima, de um penhasco remoto de quase 40 metros de altura em Timor-Leste, país a cerca de 2 mil quilômetros ao norte do litoral da Austrália.
Agora, ele estava caído no chão em uma densa floresta, gritando por ajuda, mesmo que não houvesse ninguém por perto.
"Senti que minha camiseta estava molhada, mas não sabia de onde vinha aquele líquido", contou Segui ao programa de rádio Outlook, do Serviço Mundial da BBC.
"Quando toquei minha cabeça, percebi que parte do couro cabeludo estava solto, como se fosse uma banana descascada", relembra ele. "Levei os dedos um pouco mais para cima e senti um buraco na cabeça. Imediatamente pensei: 'vou morrer'."
Ensanguentado e com os dedos quebrados na sua tentativa de frear a queda, Segui passaria cinco dias perdido nas profundas selvas de Timor-Leste. Seu resgate seria dos mais incomuns, liderado por um grupo de cabras selvagens.
Morgan Segui conta sua experiência no seu livro Cinq Jours au Timor ("Cinco dias em Timor", em tradução livre).
Mas sua história de aventuras começou muitos anos antes e muito longe de Timor-Leste. Tudo começou nas ruas e nos céus de Paris, na França.
Os céus da cidade-luz
Segui conta que seu espírito aventureiro surgiu na infância, quando leu seu livro favorito: Onde Vivem os Monstros (Ed. Cia. das Letrinhas, 2014), do escritor e ilustrador Maurice Sendak (1928-2012).
"Sempre me imaginei em um pequeno bote, cruzando o mar e conhecendo esses monstros apavorantes, em uma festa com eles", ele conta.
Repleto de sonhos de aventuras e frustrado pela vida na escola, Segui abandonou os estudos ainda jovem, para entrar no circo. Ele se tornou acrobata profissional.
Segui era tão bom no que fazia que acabou participando da cerimônia de abertura da Copa do Mundo da França, em 1998. Ele se fantasiou como o mascote do Mundial – o galo Footix – e permaneceu no ponto mais alto do Stade de France, em Saint-Denis, durante os jogos.
Mas Segui conta que, apesar do sucesso e do reconhecimento profissional por ter participado de um dos eventos esportivos de maior audiência do mundo, o trabalho durante a Copa o levou à reflexão.
"Parado no teto do Stade de France, a 45 metros de altura, pensei: 'Não vou dedicar todo este dinheiro, todo este esforço, toda a minha vida, apenas aos grandes eventos. Quero fazer algo mais.'"
Ele saiu do mundo das acrobacias e começou a viajar pelo mundo, fazendo todo tipo de trabalho. Segui foi fotógrafo, cinegrafista, pasteleiro e abriu um café, em países como Marrocos, Cazaquistão e Timor-Leste, para onde se mudou em 2017.
A vida na ilha
Desde o início da sua vida em Timor-Leste, Segui ouvia os moradores locais falarem em um local sagrado – uma grande montanha em uma ilha a cerca de 33 km da capital timorense, Díli.
Conhecida como monte Manucoco, a formação rochosa tem cerca de mil metros de altura. Ela se ergue da densa floresta tropical que cobre a ilha de Ataúro e é parte importante das tradições culturais de Timor-Leste.
Segui descreve a si próprio como um fanático por correr e caminhar – e a montanha parecia um objetivo perfeito. Inspirado pelo protagonista do seu livro favorito na infância, ele conseguiu uma pequena embarcação que o levaria de Díli até Ataúro.
"Quando cheguei à praia, como sempre acontece em Timor, muitas pessoas vieram me ajudar", relembra ele.
"Contei que iria escalar o monte Manucoco e eles disseram que já era muito tarde e que seria melhor que eu retornasse."
Mas Segui decidiu ignorar o conselho. Ele estava convencido de que, com seu ritmo, teria tempo mais que suficiente para completar a subida e descer antes do pôr do sol.
"É claro que esta é uma decisão que você não pode tomar em relação à montanha", alerta ele. "É uma postura muito arrogante e perigosa."
"A primeira regra da montanha é que o bom caminho é aquele que você pode cancelar ou postergar para o dia seguinte. Mas eu não ouvi as advertências."
Segui começou a escalada. Ele conta que, a partir dos 700 metros de altura, a paisagem da montanha começou a mudar, passando a ser mais densa e hostil.
"A selva começou a se tornar mais verde e profunda, com todo tipo de verde. Havia muitos sons específicos de aves e insetos e todo tipo de odores."
"E, como é a selva, as sombras começam a se apoderar de tudo porque ela é tão densa que a luz não consegue entrar. É um lugar mágico, é tudo o que você precisa para ser feliz", contou ele ao Serviço Mundial da BBC.
Queda abrupta
Ao chegar ao topo do Manucoco e pressionado pela chegada da noite, Segui descansou por apenas 10 minutos e começou a descida.
Ele decidiu seguir pelo mesmo caminho da subida, para reduzir o tempo do trajeto. Mas, em certo ponto, o caminho o levou para um lugar de onde não havia saída.
"Eu desci por aquele rio por cerca de uma hora, até chegar a uma cascata seca, por onde não podia descer", recorda ele. "E já não havia forma de voltar, fiquei preso em uma espécie de cânion."
"À direita, havia uma série de florestas complexas, com cobras e aranhas, que não podia atravessar. À esquerda, havia aquele penhasco. Decidi tentar escalar o penhasco de 40 metros, achando que teria sinal de celular quando chegasse em cima."
Segui conta que os primeiros 30 metros de subida foram relativamente fáceis. Mas a situação se complicou no último trecho, já que as chuvas haviam enfraquecido a rocha, que estava úmida e parecia pouco estável.
"A única coisa que havia era uma pequena árvore que sobressaía do topo e era só onde podia me agarrar."
"Em uma escalada, você sabe que uma árvore que sobressai do topo é sempre uma má ideia, mas eu precisava tentar", explica ele. "Era a única possibilidade."
Segui tentou usar a árvore para levantar o próprio corpo, mas as raízes não suportaram seu peso.
"Quando as raízes se romperam, o tempo parou por cerca de 7 ou 8 segundos. Realmente me lembro de tudo em câmera lenta."
"Observei o ar, a parede, as pedras passando por mim lentamente. Pensei que precisaria agarrar algo para me deter, mas só o que tinha disponível era a pedra. Por isso, tentei agarrá-la com todas as forças, mas os meus dedos se quebraram."
Segui caiu quase 40 metros. Ele bateu a cabeça e ficou inconsciente por pelo menos três horas.
O instinto de mamífero
Quando recobrou a consciência, ficou apavorado com a situação.
Parte do seu couro cabeludo estava pendurada. Seus dedos estavam quebrados e ele não conseguia mover o braço direito.
"Eu me lembro da sensação de pânico", ele conta. "Era muito doloroso."
"Era uma espécie de emoção muito amarga, como vinagre na alma. Você sente que tudo o que fez na vida foi ruim, todos os erros que você cometeu caem na mente como uma pedra."
Ele passou horas perdendo e recobrando a consciência de forma intermitente. Mas, quando finalmente voltou a si, Segui conta que tinha uma clareza absoluta sobre o que deveria fazer.
"Em certo momento, senti que estava no meu território e isso me ajudou muito", ele conta.
"Foi muito reconfortante pensar na ideia de que, claro, não existem hospitais para os animais selvagens e, mesmo assim, na maioria das vezes, eles se curam sozinhos."
Segui conta que havia lido sobre como os animais usavam o repouso e o jejum como métodos para curar feridas e decidiu adotar estas mesmas medidas.
"Eu disse, 'vou fazer como fazem os mamíferos: vou aproveitar, deixar de ter medo, dormir o mais que puder e deixar que o mamífero dentro de mim tome as decisões'. Depois disso, tudo ficou mais fácil."
Nos três dias seguintes, Segui conta que ocupou seu tempo imaginando que iria escrever um livro e que seria entrevistado para promover a obra.
Em certo momento, ele tentou negociar com "os deuses" e prometeu parar de beber se sobrevivesse. Em resposta, surgiu uma alucinação, com sua avó perguntando "até a cidra de maçã?"
Por fim, Segui conta que a ideia que mais o torturava não era a da morte, nem mesmo a dor. O que mais o perturbava eram seus filhos.
"Eu não sentia dor, mas sim tristeza", relembra ele. "Meu maior medo era que a minha família não soubesse mais de mim, que ninguém encontrasse meu corpo e que meus filhos nunca soubessem se eu morri ou, simplesmente, desapareci."
Ataúro
No idioma local, "ataúro" significa "cabra". Morgan Segui aprenderia o significado da palavra tempos depois que um grupo de cabras salvou sua vida, no ponto mais profundo do monte Manucoco.
Na terceira noite após o acidente, Segui acordou assustado com os ruídos do que parecia ser um animal grande se aproximando.
"Depois de alguns minutos, percebi que eram cabras", ele conta. "Elas se aproximaram muito e fiquei contente por estar coberto de folhas e galhos, de forma que elas não me viam como ser humano. Para elas, eu simplesmente fazia parte da vegetação."
"A menor delas se aproximou com o focinho e olhou, como se dissesse 'uau, você está arrebentado, mas acho que vai ficar bem'."
Para surpresa de Segui, o grupo de cabras começou escalar o penhasco, caminhando sobre o estreito caminho em zigue-zague pelas rochas. Elas forneceram a solução para o seu principal problema.
"Foi ali que eu disse 'não estou perdido'."
No dia seguinte, Segui usou todas as forças para ficar de pé, mesmo com fraturas no pé direito e em várias outras partes do corpo. Ele usou a camiseta para imobilizar o braço quebrado e se dirigiu ao caminho usado pelas cabras.
"Levei um dia inteiro para escalar o penhasco, porque fui muito, muito devagar", ele conta. "Como se fosse um urso preguiçoso, tudo foi muito lento."
Quando chegou ao cume, Segui parecia ter outra alucinação, como as que o atormentaram nos seus momentos de delírio. Ele encontrou um portão e, atrás dele, uma plantação de abacaxis.
"Eu cheguei perto de um dos abacaxis e o toquei. Estava muito maduro", relembra ele.
"Os primeiros pedaços não passaram da minha boca, que estava muito seca. Parecia uma esponja seca. Mas, quando as fibras e o açúcar finalmente chegaram ao meu estômago, foi algo inacreditável para minha mente."
"Senti que meus braços e minhas pernas conseguiam novamente se mover em conjunto", recorda ele.
Segui comeu e foi finalmente vencido pelo cansaço. Ele caiu adormecido sob as estrelas.
O retorno à civilização
Ele agora tinha certeza de que iria sobreviver.
A plantação de abacaxis significava que havia alguém por perto que poderia socorrê-lo. Ele viu uma casa ao longe e se aproximou, tentando arrumar suas roupas da melhor forma possível antes de bater à porta.
"Mas demorei muito e, de repente, vi um homem sair com um estilingue apontado diretamente para mim, enquanto eu tentava vestir as calças", ele conta.
"Ele me viu com o couro cabeludo pendurado, tentando vestir as calças e explicar o que havia acontecido. A única coisa que ele fez foi me abraçar e dizer: 'Obrigado, Jesus, por trazer este homem para o meu campo e dar forças para mim e para minha família, para podermos reuni-lo à família dele'."
"No mesmo momento, comecei a chorar."
Por acaso, o homem se chamava Moisés. Ele levou Segui para casa, sua esposa o atendeu e lhe deu de comer.
"Eu estava comendo, mas, a cada mordida, olhava para eles e voltava a chorar", relembra ele.
"Eu estava muito feliz. Foi um momento muito profundo. Eu havia voltado à civilização humana, à minha vida, à água, à comunidade, da melhor forma que poderia imaginar."
Foi assim que, depois de cinco dias angustiantes, Morgan Segui estava a salvo.
Quando estava para ser levado de volta para Díli, Segui conta que agradeceu a Moisés por toda a sua atenção. Ele diz que o recompensou financeiramente pela ajuda.
Ao se despedir, o homem confessou: "Agora, preciso voltar porque estou preparando o funeral da minha filha".
"Eu disse 'o quê?'", relembra Segui. "Você tomou tempo do funeral da sua filha para cuidar de mim? Não sei como agradecer e, agora, eu me sinto um turista estúpido que caiu da sua montanha e fez você perder uma parte importante do funeral da sua filha."
"Ele me respondeu: 'não, não, você está vivo e precisávamos cuidar de você'."
A experiência mudou a perspectiva de vida de Segui. Ele conta que deixou de ser tão egoísta e, hoje, valoriza imensamente coisas básicas, como a água.
Segui também se dedicou a ajudar as pessoas da região e incentivar projetos de abastecimento de água potável.
"Desde criança, tive muita sorte e a vida me deu muitas coisas", ele conta. "Mas fui egoísta. Hoje, tento dar mais atenção às pessoas, em vez de receber."
Ouça o episódio da série Outlook, do Serviço Mundial da BBC (em inglês), que deu origem a esta reportagem, no site BBC Sounds.
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