Luciany Aparecida

'Quer dialogar sobre o racismo? Leia uma mulher negra', diz finalista do Jabuti

Escritora baiana Luciany Aparecida fala sobre como a crescente cena literária de mulheres negras humaniza e complexifica a história do Brasil.

Antes de publicar <em>Mata Doce</em>, Aparecida usava pseudônimos -  (crédito: Divulgação/Hildermar Terceiro)
Antes de publicar Mata Doce, Aparecida usava pseudônimos - (crédito: Divulgação/Hildermar Terceiro)

Quando Luciany Aparecida tinha cerca de 12 anos, uma vizinha a levou para relaxar os cabelos. No dia seguinte, quando ela apareceu na escola no interior da Bahia com o cabelo alisado, “foi um susto”. Colegas disseram que nem sabiam que ela tinha cabelo.

“É a sociedade que diz que sou uma mulher negra. Foi o mundo que primeiro disse que sou negra. Foi a escola, do jeito mais perverso possível”, conta Aparecida à BBC News Brasil. A escritora nasceu na zona rural do Charco, no Vale do Jiquiriçá (BA).

“Ser negra no Brasil é um lugar de incômodo”, afirma.

No último dia 11, com seu sorriso largo e os cachos volumosos de quem deixou esse episódio para trás, Aparecida recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura na principal categoria, a de melhor romance, por seu livro Mata Doce (Alfaguara/Companhia das Letras) — que também concorre ao Prêmio Jabuti na categoria romance literário.

Os vencedores do Jabuti serão anunciados na noite desta terça-feira (19/11).

A BBC News Brasil conversou com a escritora baiana na Festa Literária das Periferias (FLUP), no Rio de Janeiro, onde 90% das convidadas eram mulheres negras.

Mata Doce é o primeiro livro que Aparecida – que também é doutora em Letras e professora da PUC de São Paulo – assinou com seu nome verdadeiro.

Nesta entrevista, ela conta ter escrito livros em segredo por muitos anos antes de tomar coragem de se afirmar escritora. E diz que escrever é “acionar um lugar de existência” em um país racista e patriarcal como o Brasil.

“Quando eu escrevo, em alguma medida, estou criando um mundo possível para o meu corpo viver no Brasil, o que nem sempre é possível”, afirma Aparecida.

“Você quer dialogar com a sociedade sobre o racismo? Leia uma mulher negra”, indica. “Esse é o melhor diálogo que podemos fazer.”

Leia abaixo a entrevista completa.

BBC News Brasil - Você cresceu em uma zona rural humilde na Bahia e conseguiu se formar em Letras, ser doutora, escritora e agora obter esse reconhecimento. Está mais fácil, no Brasil de hoje, dar um salto tão grande?

Luciany Aparecida - Não sei se está mais fácil. Mulheres como eu sempre transitamos por lugares pelos quais não se imaginava que pudéssemos transitar no Brasil. Temos uma tradição de mulheres que acionam lugares de deslocamento social, intelectual e cultural.

Venho de uma tradição na qual a intelectualidade não está associada a uma carreira acadêmica ou classe social. Conheço grandes intelectuais que são de uma classe pobre. E isso não está na tradição hegemônica de como a sociedade está organizada, ou no pensamento eurocêntrico que as universidades vendem.

Minha literatura dialoga muito com a história do Brasil. Na história, temos mulheres que foram arrastadas para o Brasil pelo sequestro, aqui vivendo no sistema escravista, e isso não as impediu de acionar lugares de liberdade, o que era um salto absurdo de vida. As mulheres negras de minha família fizeram deslocamentos assim.

Ao mesmo tempo, sim, no Brasil isso é mais visível nos últimos dez anos. As cotas nas universidades alteram a intelectualidade nesse contexto. A chegada de professoras negras nas universidades abre o referencial bibliográfico das disciplinas, e vemos mais escritoras negras nas bibliografias.

Isso forma um público leitor que força editoras a ter livros de mulheres negras. Isso faz com que a carreira literária de uma mulher como eu tenha possibilidade de disputa nas cenas literárias mais hegemônicas, porque existe um público leitor, porque há uma crítica com disposição de ler o texto, fazer entrevistas, conversar, tudo vai casando.

BBC News Brasil - Essas intelectuais que você menciona são da sua família?

Aparecida - Sim. Minha avó materna foi contratada como professora para ensinar uma família branca a ler no começo do século 20. Ela era de uma classe pobre e acionou um lugar de intelectualidade – a leitura e a escrita – e foi contratada como professora.

Minha avó materna é uma mulher negra de pele retinta, que teve acesso ao ensino formal no começo do século 20 porque sua madrinha, uma mulher branca que não teve filhos, financiou seu estudo formal. A partir disso, ela se tornou professora.

Essa ainda é uma história do escravismo no Brasil, porque esse deslocamento intelectual não quis dizer (mudança de) classe. Minha avó fez um deslocamento intelectual, mas não passou a ser uma mulher rica. Essas questões são complexas. Mas o que quero dizer é que tive a quem puxar (risos).

Aparecida gesticulando e sorrindo enquanto fala em evento, sentada
Divulgação/Hildermar Terceiro
Antes de publicar Mata Doce, Aparecida usava pseudônimos

BBC News Brasil - Você ganhou o Prêmio São Paulo ao lado de Eliane Marques. Foi simbólico que duas mulheres negras tenham ganhado esse prêmio tão importante. Isso fala da importância da cena de escritoras negras, desse espaço que está se abrindo no Brasil?

Aparecida - Eu queria muito dizer que sim. Mas no Brasil existem muitas mulheres negras como eu e a Eliane escrevendo literatura há muito tempo. Estamos em um bom momento, mas isso de nenhum modo quer dizer que não existiram mulheres antes da gente. Se estamos ocupando esse lugar, é unicamente porque muitas mulheres estão escrevendo há muito tempo.

E essas mulheres criaram público leitor para a nossa literatura no Brasil. Se hoje chegamos a esses prêmios, é porque existe um público leitor.

Não era para ser extraordinário nós duas ganharmos um prêmio. Era para ser cotidiano. Mas se a gente para para pensar, qual foi a última mulher negra que ganhou na categoria romance um prêmio literário de destaque no Brasil? Qual mulher baiana ganhou um prêmio de destaque assim?

Temos marcos como Um Defeito de Cor (Ana Maria Gonçalves), Ponciá Vicêncio (Conceição Evaristo), O Crime do Cais do Valongo (Eliana Alves Cruz), três romances que fundaram uma geração de mulheres romancistas no Brasil, mesmo sendo completamente diferentes entre si. Isso gera um desejo de escrita, uma inspiração. Esses textos nos humanizam.

No Prêmio São Paulo de Literatura, Lília Guerra estava na mesma categoria que eu com o romance O Céu para os Bastardos. Esse livro me humanizou. Fui felicíssima para a cerimônia pensando que poderia dizer isso para ela. Ao ler o livro, eu pensei, “a história de minha vida no meu país tem validade”. Isso me dá uma segurança absurda de existir. Isso me diz, está tudo bem, você pode viver.

BBC News Brasil - Qual é a temática do livro, o que te tocou?

Aparecida - Ele fala dessa possibilidade de deslocamento na sociedade e dos lugares de existência das mulheres. Livros como o Céu para os bastardos e Louças de família (Eliane Marques) trazem personagens femininas negras complexas, que ocupam lugares de exaustão na sociedade, mas ao mesmo tempo de reflexão existencial profunda.

Então você pensa, ok, eu vivo situações de violência e de exaustão, mas eu também posso dialogar intelectualmente sobre isso no mundo.

Quando lemos esse livro, ganhamos dignidade. E eu penso assim, eu posso ser escritora, eu posso continuar fazendo o que estou fazendo. Isso é fundamental para complexificar o mundo, independente da pessoa leitora ser branca ou negra. Todo mundo ganha, todo mundo sai com uma maior percepção.

BBC News Brasil - Como foi a sensação de receber o prêmio?

Aparecida - Estou felicíssima com o prêmio e com a possibilidade de que as pessoas leiam Mata Doce. Eu acho que essa é a maior dignidade. O maior prêmio que uma escritora viva pode receber é que as pessoas leiam o seu livro.

Então quero só dizer para todas as pessoas – você quer dialogar com a sociedade sobre o racismo? Leia uma mulher negra. Esse é o melhor diálogo que podemos fazer.

BBC News Brasil - A Flup deste ano focou em histórias e biografias ligadas à diáspora africana, com 90% das convidadas sendo mulheres negras. O que um evento como esse representa, a seu ver? Qual a importância que tem?

Aparecida - A inspiração. É um evento inspirador, primeiro porque entendemos que não estamos sozinhas elaborando a arte. Ampliamos as nossas referências. Ao ler outra escritora, ao ouvi-la falar, isso toca em coisas que também pensávamos, mas não tínhamos segurança de afirmar.

Ao mesmo tempo, para o público de modo geral, (a importância) é entender isso com mais complexidade. Entender que não é um elemento isolado da cultura ou da literatura brasileira. É um movimento de mulheres negras afrodispóricas. Os nossos trabalhos dialogam, criam uma ponte de diálogo um em outro. E isso é fundamental, porque foi assim que a gente sobreviveu.

Eu estou hoje aqui podendo contar essas histórias porque muitas mulheres fizeram ponte de sobrevivência entre si. Se não, teria vencido a teoria do embranquecimento no Brasil no final do século 19, que disse que a minha geração não funcionaria. Seria embranquecida completamente e esqueceria que somos negras.

BBC News Brasil - Quando seu avô faleceu, você conta que sua família achou um baú embaixo da cama com uma edição do poema O navio negreiro, de Castro Alves, que ficou para você. Quando foi que a história da escravização entrou na sua percepção? Ou mesmo ser negra, quando você começou a refletir sobre isso?

Aparecida - Primeiro que refletir sobre ser negra no Brasil não é simples, porque estamos falando de um país absurdamente racista, e o racismo é marcado por traços físicos e estereótipos. Quanto mais uma pessoa tem registros no corpo, mais ela pode se aproximar ou se afastar.

Para as mulheres pardas, a identificação com uma mulher negra não é simples. Comecei a me entender como mulher negra porque a minha avó dizia isso, “somos uma família negra”, apesar de termos pessoas de diferentes tons de pele no núcleo familiar.

Mas é a sociedade que diz que sou uma mulher negra. Foi o mundo que primeiro disse que sou negra. Foi a escola, do jeito mais perverso possível.

Quando eu tinha 12 ou 13 anos, uma vizinha me levou para relaxar o cabelo. Quando cheguei à escola, foi um susto. As pessoas diziam, “nossa, eu nem sabia que você tinha cabelo”.

Quando eu defendi o meu doutorado, há uns 11 anos, fui ao teatro sozinha para comemorar. Estava feliz. Quando eu me sentei, uma mulher atrás de mim disse: “Pessoas com esse tipo de cabelo não deveriam frequentar esses espaços”.

Ela se sentiu incomodada porque meu cabelo estava armado e ela não conseguia ver o palco.

Então, são as pessoas que me dizem isso. Ser negra no Brasil é um lugar de incômodo. Obviamente somos muito diversas, e para uma mulher negra de pele retinta a experiência é completamente diferente, não dá para falar em uma perspectiva hegemônica.

Mulheres negras protestando à noite; uma delas levanta cartaz que diz 'Pela vida das mulheres pretas'
Getty Images
Manifestação da Jornada Nacional de Luta Pelas Vidas Negras no Rio de Janeiro, em 2023; escritora afirma que, no Brasil, a vida dela 'às vezes corre perigo'

BBC News Brasil - Você costuma se afirmar como mulher negra, baiana, nordestina. O seu impulso pela literatura tem a ver com esses traços identitários, com um desejo de falar deste lugar?

Aparecida - O meu impulso pela literatura tem a ver com um desejo de vida. Como no Brasil minha vida às vezes corre perigo, acionar um lugar de escrita é acionar um lugar de existência, porque estou defendendo a minha vida, em alguma medida.

Quando eu escrevo, em alguma medida, estou criando um mundo possível para o meu corpo viver no Brasil, o que nem sempre é possível. Mata Doce tem como personagens principais duas mulheres que vivem um relacionamento amoroso, são velhas, vivem numa comunidade rural e adotam uma criança.

Esse não é um núcleo familiar que possa viver em paz no Brasil. Se a gente vai para as estatísticas, o feminicídio, para dizer o mínimo... Nem quero ficar trazendo isso, porque às vezes é cansativo ficar acionando esses lugares de violência.

Mas acho que escrevo para estar... Eu não sei o que é não escrever. Comecei a escrever adolescente, ali na transição entre a infância para a adolescência. Quando eu tinha 11 anos, ganhei um diário e comecei a escrever. E aí nunca não escrevi. Então eu não sei muito o que seria não escrever.

BBC News Brasil - Mata Doce é o primeiro livro que você assinou com o seu nome. Antes, você usava pseudônimos. Em uma entrevista você contou que tomou coragem após visitar mulheres em uma prisão. Como foi essa história?

Aparecida - Eu sempre escrevia livros e os deixava em casa. Eu já devia estar no sétimo exemplar. Eu mesma fazia o livro. Na adolescência, eu datilografava. Depois, passei a fazer no computador. Imprimia e costurava todas as páginas.

Em 2011, eu estava escrevendo um livro com a personagem de uma mulher que havia estado presa – Florim, que depois foi publicado com a assinatura Ruth Ducaso. Aí uma amiga em comum disse que eu tinha que conhecer a Denise Carrascosa, professora da Universidade Federal da Bahia, porque ela realizava oficinas no presídio.

Até então, eu nunca tinha publicado em uma editora. Eu fazia livros de artista, um único volume, e guardava em casa. E eu nunca tinha dito em público, “eu escrevo”.

BBC News Brasil - Você não mostrava esses livros para ninguém?

Aparecida - Não, não mostrava. Eu tinha muita vergonha. Eu não falava pra ninguém. Mas precisei dizer para a Denise e explicar que estava fazendo uma personagem. Ela falou, tá, você pode ir comigo, mas vai ter que dizer isso para as mulheres, dizer qual é a sua. Eu pensei, meu Deus, vou ter que falar em público que eu escrevo, que desespero.

Quando chegamos lá, havia um grupo de umas 15 mulheres no pátio do presídio para a aula de Denise, mas muitas outras estavam lá, e algumas mulheres iam ser liberadas. Quando uma mulher presa vai sair, as outras gritam muito, batem copos na cela para comemorar, era um barulho muito grande.

Eu aproveitei do barulho para contar de um jeito que não se ouvisse muito. Eu disse, gente, fiquem bem perto de mim porque eu tenho um segredo para contar. “Eu sou escritora”. Foi a primeira vez que eu oralizei em um lugar.

Acho que isso é muito significativo. As estatísticas de mulheres negras presas no Brasil são absurdas, são várias complexidades. Mas falo no lado simbólico – ao pensar o que é ser uma mulher negra presa no Brasil no campo simbólico.

Eu era uma escritora presa. Por não entender que eu podia, numa cena pública, dizer assim: eu escrevo, eu sou escritora.

Não é simples. Não é simples para uma mulher numa sociedade machista e patriarcal assumir lugares. Aí se a gente vai acrescentando: mulher negra, mulher nordestina, mulher LGBT, é muita sacola que a gente tem que carregar.

A Gloria Anzaldúa diz que escrever é poder colocar alças no mundo para melhor segurar. Então é isso, é muita sacola que a gente tem que segurar. E se sustentar em pé, ereta, com muita sacola, não é simples. Então ali, de algum jeito, eu me senti, por mais contraditório que pareça, acolhida, segura. Foi assim que se deu.

BBC
Júlia Dias Carneiro - Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
postado em 19/11/2024 06:53 / atualizado em 19/11/2024 20:22
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