O que Vladimir Putin, iogurtes de mirtilo, o Prêmio Nobel da Química deste ano e a Guerra Fria têm em comum?
A resposta está nas 64 casas do tabuleiro de xadrez, nas suas combinações quase infinitas e na sua capacidade de se tornar uma metáfora do mundo e da vida.
O xadrez, diz Leontxo García, é muito mais do que um jogo ou esporte emocionante com mais de 1.500 anos de história documentada.
García é um jornalista dedicado, há quase 40 anos, a transmitir e difundir essa paixão. Isto permitiu que ele conhecesse todos os grandes mestres da especialidade, incluindo figuras históricas como o imensurável e obscuro Bobby Fischer, que ele descreve como “um gênio do xeque perpétuo”.
O xadrez, garante, não é apenas para mentes brilhantes.
Utilizado como ferramenta educacional, o jogo serve para promover uma infinidade de habilidades, além de ajudar a retardar o envelhecimento cerebral.
Também permite aprender sobre áreas tão diversas como psicologia, matemática, inteligência artificial, cinema ou política internacional.
Ouvir Leontxo García em seus podcasts, vídeos ou conferências, ou lê-lo nas colunas que escreve no El País desde 1985, transporta você para um mundo de duelos e rivalidades ficcionais, de feitos heróicos e mentes maravilhosas que tocam os limites da realidade.
Seu entusiasmo até o transformou em um meme famoso, que ele adaptou com humor e inteligência para dar o nome ao seu boletim informativo semanal: “Maravillosa jugada”.
Grande comunicador, ele diz que o xadrez o ajuda a falar sobre qualquer assunto. “Imagine quantas coisas interessantes e personagens fascinantes existiram em 15 séculos”.
A BBC Mundo conversou com ele no Hay Festival Arequipa, que acontece de 7 a 10 de novembro.
O xadrez não só nos deixou muito vocabulário para falar de política e estratégia - como “colocar em xeque” - como também teve uma faceta real muito importante, especialmente na Guerra Fria, com os grandes duelos da história do xadrez.
Na verdade, não creio que exista nenhum jogo tão atraente como o xadrez para fazer metáforas no mundo da política.
No entanto, durante a Guerra Fria, havia uma abordagem muito mais pragmática. A União Soviética era o maior país do mundo, com 287 milhões de habitantes, dos quais 5 milhões eram jogadores federados de xadrez e 50 milhões praticavam o jogo de forma esporádica."
Na Casa Branca sabiam que o Kremlin usava o xadrez como vitrine para a alegada superioridade intelectual do comunismo sobre o capitalismo.
Por isso, quando um americano rebelde, autodidata e excêntrico, Bobby Fischer, vence o Torneio de Candidatos e se torna o desafiante do campeão mundial de 1972, o soviético Boris Spassky, o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, liga para ele e diz:
'Estou ligando em nome do presidente Nixon para pedir, como um favor patriótico, que você vá à Islândia e vença Spassky, porque para nós isso seria como lançar um torpedo na linha de flutuação da propaganda comunista.'
Não sei bem o que mais convenceu Fischer, se foi o aumento no prêmio ou o fervor patriótico, mas ele foi a Reykjavik, venceu e foi recebido como herói em Washington.
E Spassky, como traidor em Moscou.
Para os soviéticos, houve muitos traidores... O próprio Viktor Korchnoi, outro dos grandes jogadores da história, disse que não enfrentaria Anatoli Karpov, mas sim o Exército Vermelho, no Campeonato Mundial de 1978, talvez um dos mais bizarros já realizados.
Korchnoi, um dos melhores jogadores produzidos pela escola soviética em 70 anos, era considerado traidor pelo Kremlin, pois havia desertado.
Quando Spassky perdeu a honra nacional para Fischer, a União Soviética precisava de alguém para recuperá-la e tinha dois candidatos: Karpov ou Korchnoi.
Karpov era mais jovem e possuía um perfil muito mais adequado para ser promovido como ideal, pois é filho de um operário da região dos Urais, perto da Sibéria, enquanto Korchnoi tinha um perfil mais intelectual, menos conformista, e algumas noites de álcool e mulheres em Havana durante um torneio...
Assim, Karpov foi escolhido.
Korchnoi ficou profundamente irritado, fugiu da União Soviética e, depois, venceu o Torneio de Candidatos, tornando-se o desafiante do novo herói nacional, que é justamente Karpov.
Essa é uma história tão atraente para o jornalismo ou para o cinema que o filme que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1984, Fora de Controle, foi inspirado nesse duelo.
Mas também houve muitas anedotas nesse campeonato...
Ah, sim, claro. A mais saborosa talvez seja a dos iogurtes.
A delegação de Korchnoi apresentou uma queixa formal ao árbitro, que era o alemão Lothar Schmid, dizendo mais ou menos o seguinte: "O senhor Kárpov está consumindo iogurtes durante as partidas, e suspeitamos seriamente que, dependendo da cor da embalagem, do tamanho, do sabor, do garçom que o serve ou do horário, isso pode conter mensagens secretas do tipo 'sacrifique um peão' ou 'ataque pelo flanco do rei', e, portanto, pedimos que o senhor Kárpov não possa consumir iogurtes durante as partidas".
A reação normal seria rir alto, mas Schmid não pôde fazer isso porque era o árbitro principal do campeonato mundial.
Em seguida, sua frase foi: “O Sr. Karpov poderá continuar comendo iogurte durante os jogos, mas terão que ser sempre da mesma cor, sabor e tamanho servidos pelo mesmo garçom e no mesmo horário”.
Outro dos grandes jogadores soviéticos depois entrou na política, e com sérias consequências. Refiro-me, evidentemente, a Garry Kasparov, que esteve na prisão, teve que se exilar e está ameaçado… Você tem uma relação bastante próxima com ele.
Sim, sim, já devo ter entrevistado Kasparov, assim como Kárpov, mais de 100 vezes.
A última vez — no início de maio em Nova York — foi muito intensa. Poucos dias antes, ele tinha sido oficialmente incluído na lista de "terroristas e extremistas".
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Isso significa que ele corre grandes riscos de sofrer algum ataque a qualquer momento. Agora, ele toma muito cuidado com os países que visita e com as medidas de segurança.
Por um lado, é muito triste, e por outro, é muito significativo sobre como ele foi educado por sua mãe, uma das pessoas mais duras que já conheci.
Sempre me lembro de uma frase que ela me disse no Natal de 1985, um mês e meio depois que seu filho se tornou o campeão mundial mais jovem da história: "Ser sempre o número um é extremamente difícil e, portanto, viver pelo prazer de viver é algo que nem meu filho nem eu entendemos."
Na vida de Kasparov, só há espaço para objetivos grandiosos; não há lugar para questões leves ou frívolas.
Ele se tornou o campeão mundial mais jovem da história aos 22 anos, derrotando nada menos que o super-herói nacional Anatoli Kárpov, que havia vencido o "traidor" Korchnoi duas vezes.
Depois, assumiu o estandarte da humanidade contra os computadores ao enfrentar o Deep Blue, vencendo em 1996 e perdendo em 1997.
Ele foi número um do mundo por 20 anos consecutivos, um recorde que nem mesmo Magnus Carlsen, o atual número um, está perto de bater e que talvez nunca seja superado.
E, quando finalmente se aposentou em 2005, anunciou que deixava o xadrez de alto nível porque sua nova prioridade era destronar Putin, e disse isso diretamente.
Você presenciou os duelos entre ele e o Deep Blue em 1996 e 1997. Como foi essa experiência?
Bom, foi algo tremendo.
A imprensa americana comprou a ideia que Kasparov vendia de que ele era o estandarte da humanidade contra as máquinas.
Em Manhattan, havia cartazes gigantes nas paredes. Um deles exibia uma foto enorme de Kasparov em destaque, com uma manchete abaixo que dizia: “Será que este homem conseguirá salvar a humanidade?”
Era muito significativo que mais de 90% do público que assistia às partidas fosse americano, e no palco estavam Kasparov com a bandeira russa e o operador da IBM com a bandeira americana.
No entanto, quase todo o público torcia pelo russo, algo realmente surpreendente nos Estados Unidos.
No dia em que Kasparov perdeu, as ações da IBM dispararam em Wall Street.
Mas, posteriormente, a IBM demonstrou que não era apenas publicidade, pois utilizou o que aprendeu com Deep Blue e Kasparov em vários campos da ciência, cujo fator comum é o cálculo molecular.
Por exemplo, na fabricação de medicamentos complexos, previsão meteorológica, planejamento agrícola, cálculos na bolsa de valores...
Não exagero muito, talvez só um pouco, ao dizer que hoje, quando vamos a uma farmácia comprar um medicamento de fabricação complexa, estamos nos beneficiando do que a IBM aprendeu ao vencer Kasparov.
Você já contou em algumas ocasiões algo que acho muito bonito: que a vitória do Deep Blue não foi uma derrota da humanidade, mas, no fundo, uma grande vitória da humanidade, que conseguiu conceber uma máquina assim.
Claro, com isso acontece algo muito parecido ao que ocorre com a energia atômica e a inteligência artificial.
O grande perigo não está nelas mesmas, mas no uso criminoso que pode ser feito de suas aplicações.
Dito isso, há motivos para otimismo, e é aí que chegamos a Demis Hassabis, o Prêmio Nobel de Química.
...que também era enxadrista.
Exato. Quando Kasparov perdeu para o Deep Blue, Hassabis estava se formando em Cambridge com as melhores notas possíveis. Ele tinha sido um prodígio do xadrez e, felizmente para a humanidade, escolheu a ciência em vez do xadrez.
Por muitos anos, ele refletiu sobre como a IBM havia programado o Deep Blue, inserindo um banco de dados com milhões de partidas jogadas desde o século XVI e aperfeiçoando-o com o apoio de grandes mestres humanos.
Vinte anos depois, em 2017, Hassabis fez algo completamente diferente ao lançar o programa AlphaZero, ao qual ensinou apenas as regras básicas do xadrez, fazendo-o jogar milhões de partidas contra si mesmo e aprender com cada uma.
O resultado foi AlphaZero 27, Stockfish 0, o melhor programa de xadrez do mundo na época.
Depois, ele fez algo semelhante com o AlphaGo, baseado no go, um jogo de grande paixão em muitos países asiáticos, que também venceu o campeão mundial dessa modalidade.
E isso estabelece as bases para os grandes avanços que viriam depois...
Exatamente. A DeepMind, a empresa do Google liderada por Demis Hassabis, criou o AlphaFold, que em 2020, com base no que aprendeu com o xadrez e o go, alcançou, senão o maior, um dos maiores avanços da história da biologia: desvendar a estrutura das proteínas, um elemento essencial para a vida, formado por milhões de combinações possíveis de aminoácidos.
O conhecimento adquirido no xadrez foi extremamente valioso, já que o número de partidas distintas que podem ser jogadas é maior do que o número de átomos em todo o universo conhecido. Se o número de átomos é um 1 seguido de 80 zeros, o de partidas distintas possíveis no xadrez é 1 seguido de 123 zeros. E o do go é ainda maior.
Ter aprofundado tanto nesse campo tornou possível decifrar a estrutura das proteínas, apesar de que os maiores especialistas mundiais em biologia pensavam que isso não seria alcançado em todo o século XXI.
Graças a isso, há um ou dois anos, foram alcançados os avanços mais recentes na luta contra o câncer de fígado ou em antidepressivos, e sabe-se que nos próximos meses, no máximo nos próximos poucos anos, veremos enormes avanços científicos baseados no que Demis Hassabis e sua equipe conseguiram com as proteínas.
Por isso, ele recebeu o Prêmio Nobel (junto com David Baker e John M. Jumper).
Voltando às metáforas do xadrez, que partida Putin está jogando na Ucrânia?
Putin está seguindo uma estratégia de desgaste, esperando ou confiando que seu adversário cometa algum erro definitivo ou simplesmente se renda pelo cansaço.
Mas, na realidade, ele não tem forças suficientes para ganhar a partida se seu adversário aguentar o suficiente.
Por isso, a probabilidade de Putin ganhar ou perder essa partida depende mais dos aliados da Ucrânia. Se eles oferecerem apoio suficiente, ele nunca poderá vencer.
Você foi jogador semiprofissional e teve a sorte de conhecer todos os grandes mestres e campeões das últimas décadas. Qual deles mais o impressionou ou marcou de alguma forma?
Essa é a pergunta mais difícil que você já me fez, pois é ainda mais complicada do que a famosa questão "você prefere seu pai ou sua mãe".
Quem mais me impressionou, no sentido literal da palavra, pela sua personalidade, foi Bobby Fischer.
A ele é atribuído um QI superior ao de Einstein, mas ele também era uma pessoa com graves problemas mentais. Conviver com ele era realmente impressionante.
Kasparov talvez seja quem mais contribuiu para a divulgação do xadrez no mundo. E é uma pessoa muito culta.
Viswanathan Anand também impressiona, pois você pode conversar com ele praticamente sobre qualquer coisa, e ele é incrivelmente modesto, apesar de ser um dos melhores jogadores de todos os tempos.
E assim por diante. Todos os campeões mundiais são pessoas excepcionais porque, caso contrário, não chegariam a ser campeões do mundo, e cada um deles impressiona por razões diferentes.
E quais características você acha que essas pessoas com mentes privilegiadas que chegaram ao topo do xadrez compartilham?
Uma enorme fortaleza mental, que as leva a resistir a tensões e pressões de todo tipo.
Falando sobre isso, estou me lembrando de alguém que talvez seja uma exceção: o atual campeão, Ding Liren, que está em uma situação muito crítica.
Ele se tornou campeão do mundo há cerca de um ano e meio de forma épica: sua namorada o havia deixado alguns meses antes do campeonato mundial; é uma pessoa hipersensível, com enorme cultura geral, e venceu no desempate rápido.
Mas depois, durante oito ou nove meses, teve enormes dificuldades para dormir. E ainda não se recuperou disso.
Leontxo, para terminar, você disse muitas vezes que o xadrez ensina a pensar. Por que isso é tão importante e para que mais serve o xadrez?
Bem, que o xadrez ensine a pensar neste momento da história é de uma importância fundamental.
E não sou eu quem diz isso: nos últimos meses, dei várias palestras ou workshops para professores e sempre peço que compartilhem suas preocupações.
São principalmente duas: como motivar os alunos para que entrem na sala de aula com vontade de aprender quando uma grande porcentagem está “emburrecida” pelo mau uso das redes sociais, e o que podemos ensinar hoje com a certeza de que será útil daqui a dez anos.
Por mais que o mundo mude, daqui a uma década é certo que saber pensar continuará a ser essencial, e o xadrez é um jogo que ensina a pensar e a aprender jogando, o que é uma das leis infalíveis da boa pedagogia.
Em crianças de 3 a 6 anos, por exemplo, se você combinar o xadrez com música e dança em um tabuleiro gigante no chão, pode trabalhar aspectos como psicomotricidade, memória, concentração, atenção, respeito pelas regras, pelo colega, controle do primeiro impulso...
Isso é algo que, por exemplo, Adriana Salazar faz na Colômbia, que, na minha opinião, é a maior especialista do mundo, especialmente em xadrez na etapa pré-escolar.
Também está sendo aplicado em países como Espanha, em várias províncias da Argentina, no Uruguai e em Cuba, e outros governos da América Latina estão estudando incluir isso em seus planos educacionais.
Além disso, conforme os alunos vão crescendo, é possível trabalhar ainda mais aspectos como o pensamento crítico e a tomada de decisões.
A lista de qualidades ou capacidades que o xadrez desenvolve é realmente enorme.