"O dia que esperávamos há 6 anos está com data marcada", diz o Instituto Marielle Franco, criado em homenagem à vereadora carioca morta a tiros no Centro do Rio em 2018, ao lado do motorista Anderson Gomes, que também foi alvejado e faleceu.
O aguardado dia é esta quarta-feira, 30 de outubro, quando começa o julgamento dos acusados de serem os autores dos assassinatos, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz.
Eles já confessaram o crime e fizeram delações premiadas.
Em março, a Polícia Federal apontou como mandantes do assassinato os irmãos Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE); e Chiquinho Brazão, deputado federal (sem partido-RJ). Em sua delação, Ronnie Lessa os apontou como mandantes.
Os irmãos estão presos desde então e são réus em uma ação penal no Supremo Tribunal Federal (STF), já que Chiquinho Brazão é parlamentar e tem foro privilegiado. Os dois negam reiteradamente envolvimento com as mortes.
O julgamento de Lessa e Queiroz acontecerá por meio de júri popular, quando pessoas comuns decidem em conjunto sobre o caso. Foram selecionadas 21 pessoas que poderão participar — sete delas serão sorteadas para de fato compor o júri.
O julgamento, que
Os réus, que estão presos, participarão por videoconferência. Lessa está no Complexo Penitenciário de Tremembé, no Estado de São Paulo, e Élcio, no Complexo da Papuda, no Distrito Federal.
Em entrevista à CNN Brasil, os advogados de Lessa e Queiroz disseram acreditar que o julgamento será rápido.
"Não tem muito o que discutir", disse à CNN Saulo Carvalho, advogado de Lessa.
"O que vamos argumentar é por uma condenação justa, visto que o caso foi todo solucionado com base na colaboração dele."
O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) anunciou que vai pedir pena de 84 anos de prisão para cada réu — o número é a soma da pena máxima dos crimes pelos quais ambos estão sendo acusados, que são duplo homicídio triplamente qualificado; uma tentativa de homicídio; e receptação do carro usado no dia do crime.
A acusação do MPRJ levará ao tribunal como testemunha a jornalista Fernanda Chaves, que era assessora de Marielle Franco e estava no carro que foi alvejado, sobrevivendo.
Durante o julgamento, as testemunhas não podem se comunicar e dormem nas dependências do Tribunal de Justiça do Rio.
De acordo com Christiano Fragoso, professor do departamento de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pelas regras brasileiras os membros do júri não podem conversar entre si e combinar decisões — diferente dos países anglo-saxões, como é comum ver nos filmes americanos, onde os jurados discutem entre si antes de anunciar uma decisão.
Fragoso explica que, após a exposição de argumentos e de depoimentos de testemunhas, ao fim do julgamento os membros do júri popular devem decidir pela condenação ou absolvição do réu para cada crime que ele é acusado.
Depois, é um juiz que decide qual vai ser a pena — quantos anos e qual regime, entre outros.
Mas os jurados não se colocam apenas no fim do julgamento.
"Ele pode fazer pergunta para uma testemunha [durante o julgamento]; ele pode pedir esclarecimentos sobre algum ponto do processo... É raro, mas ele pode. Tem que fazer com muito cuidado, porque o jurado que vai fazer essa pergunta não pode dar a entender em que sentido ele vai votar", aponta Fragoso, que é doutor em Direito Penal pela UERJ.
O júri popular é previsto na Constituição para crimes dolosos contra a vida. O dolo significa a intenção de atingir um resultado — nesse caso, a morte de alguém — ou a aceitação de que uma determinada ação possa acabar levando à morte de alguém.
O Código Penal define quais crimes contra a vida devem ser avaliados pelo júri popular: homicídio; feminicídio; induzimento, instigação ou auxilio ao suicídio ou à automutilação; infanticídio; e aborto.
O Código de Processo Penal, por sua vez, prevê que uma decisão do júri popular pode ser questionada em recurso.
O recurso pode apontar questões jurídicas ou que a decisão dos jurados foi contrária às provas apresentadas.
"O Tribunal de Justiça [em caso de recurso à segunda instância] não pode reformar a decisão no sentido de dizer, por exemplo: o réu foi absolvido pelo júri, mas eu estou condenando. Ele pode sim determinar que se refaça o julgamento", explica o professor da UERJ.
Embora não seja comum, é possível que um júri popular absolva um réu confesso — quando entender, por exemplo, que ele confessou falsamente um crime por pressão externa ou medo de retaliação.
Mas, em geral, a confissão é "muito forte" como prova de um crime, aponta o professor.
"Já se chegou a dizer que a confissão é a rainha das provas, ela reinaria absoluta diante de todas as outras provas. Mas a mera confissão não exonera a acusação de comprovar que um fato aconteceu, que aquela pessoa é culpada", explica.
Penas para Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz
O MPRJ, que fará o papel de acusador no julgamento, pediu quase nove décadas de prisão para Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz. Entretanto, por vários motivos, esse não deve ser o tempo que eles ficarão na cadeia.
Primeiro, porque o Código Penal estabelece que confessar um crime às autoridades, como fizeram Lessa e Queiroz, atenua a pena. Segundo Christiano Fragoso, não há um valor ou fração pré-estabelecidos na lei para qual seria a redução na pena — essa é uma decisão do juiz.
E o mesmo código também determina que uma pessoa não pode passar mais de 40 anos na prisão.
Fragoso diz que a decretação de penas superiores a isso continua sendo importante para o cálculo de benefícios como a progressão de regime e a liberdade condicional, mesmo que essa longa pena não vá ser efetivamente cumprida.
Outra possibilidade de redução de pena é o preso trabalhar, em geral na própria penitenciária — a cada três dias trabalhados, o detento reduz em um dia sua pena.
Já a progressão do regime, de fechado para semiaberto por exemplo, Fragoso vê como mais difícil para crimes hediondos como homicídio, pelo qual Lessa e Queiroz estão respondendo.
"A quantidade de pena que você tem que cumprir primeiro, para sair do regime fechado para o semiaberto, é uma fração alta. Além disso, existem requisitos que são subjetivos", afirma.
"Por exemplo, mesmo depois de cumprir uma quantidade de pena, quando é crime com violência ou grave ameaça, exige-se que passe por uma perícia que diga que cessou a periculosidade daquela pessoa. Isso é muito difícil conseguir em um caso desse."
'Justiça mesmo seria minha mãe estar aqui'
As famílias de Marielle e Anderson, além de organizações sociais, estão organizando uma manifestação em frente ao tribunal no Rio nesta quarta-feira, a partir de 7h da manhã. O julgamento está previsto para começar às 9h.
"Foram 78 meses e mais de 2 mil dias em que nos juntamos desde que nos tiraram Marielle e Anderson. Marchamos, gritamos, nos emocionamos, amarramos lenços e levantamos placas em busca por justiça. A nossa força nos trouxe até aqui e nesse mês a justiça, enfim, vai começar a ser feita", escreveu o Instituto Marielle Franco em seu site.
Luyara Franco, filha de Marielle que hoje tem 19 anos, disse à revista Marie Claire estar ansiosa pelo que chamou de "etapa mais importante desde 14 de março de 2018" — data da morte da vereadora e do motorista.
"Esse julgamento é importante para garantir a responsabilização dos autores, a reparação para a família e, principalmente, para evitar que esse episódio se repita. Mas justiça mesmo seria minha mãe estar aqui", disse Luyara.
Anielle Franco, irmã de Marielle e ministra da Igualdade Racial, disse à TV Globo que, para além da dor, o caso motivou a família a abraçar causas maiores, como a violência contra mulheres, negros, favelados e pessoas LGBTQIAPN+.
"A gente fez do nosso luto a luta diária. Não somente pela Marielle, mas também pela família do Anderson, por todas as pessoas que já tombaram no nosso país", disse Anielle Franco em entrevista ao programa Encontro.
"Agora tem uma outra batalha, né? Ver as pessoas contando os detalhes de como foi articular e assassinar uma mulher que tinha sido eleita democraticamente."
Além dos irmãos Brazão, Rivaldo Barbosa, ex-diretor da Polícia Civil do Rio; e o ex-policial Ronald Paulo de Alves também respondem à ação penal no STF, acusados de participar do planejamento dos assassinatos.
Rivaldo Barbosa, ex-diretor da Polícia Civil do Rio de Janeiro, assumiu o controle do órgão um dia antes da morte de Marielle.
Ele é suspeito de ter usado o cargo para proteger os irmãos Brazão e impedir que as investigações chegassem aos dois.
O ex-policial militar Ronald Paulo de Alves, conhecido como Major Ronald, é acusado de monitorar Marielle.
Enquanto isso, corre na Câmara dos Deputados um processo que pede a cassação do mandato de Chiquinho Brazão por conta dessas acusações. Após decisão favorável do Conselho de Ética à perda do mandato, o caso aguarda votação no plenário da casa.
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