A casa na pequena cidade de Vuhledar, no leste da Ucrânia, era a felicidade de Marina Perederii.
O número 17 da rua Sadova era pouco mais do que apenas paredes quando ela e o marido a compraram.
Eles reformaram o imóvel cuidadosamente, pintando flores de cerejeira e pombos — símbolos de amor e bem-estar — no quarto. Construíram uma piscina no jardim e uma sauna no porão.
'Não sei se voltaremos'
"Tudo foi planejado com muito amor", disse Marina ao Serviço Mundial da BBC. Mas a paz não duraria.
Em fevereiro de 2022, a Rússia lançou sua invasão em grande escala da Ucrânia. O marido de Marina foi para o combate e ela foi embora com os filhos. Antes de fugir, Marina filmou o que achou que poderia ser seu último momento na casa da família.
"Minha querida casa, não sei se você vai ficar de pé ou não. Não sei se algum dia voltaremos aqui, ou se sobreviveremos", diz ela no vídeo.
Um ano depois, em fevereiro de 2023, ela viu a casa novamente. Mas desta vez pelos olhos de um soldado russo, em imagens feitas pela câmera corporal dele que foram postadas redes sociais.
Um fuzileiro naval chamado Fima estava em sua sala de estar, folheando fotos de Marina e da família. "Lindo", disse ele, olhando para uma foto.
Foi uma imagem arrepiante que a deixou com raiva. "Eu gostaria de ter levado os álbuns comigo", diz Marina.
A Ucrânia passou dois anos e meio defendendo Vuhledar e, apesar da grande ofensiva lançada em 2023, as forças russas não conseguiram capturar a cidade completamente até o momento.
Durante a longa batalha, enquanto a linha de frente mudava, Fima liderou um grupo de soldados para os subúrbios no final de janeiro de 2023 e participou de combates pesados na rua Sadova. Ele e outros entraram, então, na casa de Marina.
Quando as imagens feitas por sua câmera corporal viralizaram na Rússia, Fima foi celebrado como um herói.
Documentos oficiais mostram que ele foi retirado do front de batalha em fevereiro de 2023 devido a um ferimento na perna.
Mas o que a filmagem não mostrou foi que os russos mantiveram um soldado ucraniano no porão de Marina morrendo de fome e precisando desesperadamente de cuidados médicos. O nome dele é Oleksii.
Antes da guerra, Oleksii trabalhava como especialista em TI. Quando a Rússia invadiu seu país, ele se ofereceu para lutar e tornou-se um operador de drones em Vuhledar. O amor que tinha pela dança rendeu-lhe o apelido de Dançarino.
Quando os russos romperam as linhas de defesa ucranianas no final de janeiro de 2023, Oleksii e seus companheiros tentaram recuar, mas alguns, Oleksii entre eles, foram baleados.
Feridos, eles foram levados de casa em casa por soldados russos, e Oleksii acabou no porão da casa de Marina.
Lá ele foi mantido em cativeiro por quase um mês - imagens russas postadas online mostram ele enrolado em um dos tapetes de Marina.
Durante a batalha por Vuhledar, houve um momento em que os soldados russos recuaram e deixaram Oleksii para trás. Ao todo, ele passou 46 dias na casa de Marina e em grande parte desse tempo quase sem comida ou água.
Ferido, faminto e desidratado, ele não conseguiu sair do local.
"Consegui encontrar algumas migalhas no chão", disse ele ao Serviço Mundial da BBC direto de Kiev.
"Havia um pedaço de biscoito, que um rato roubou de mim à noite. Eu o escondi, e então o rato provavelmente roubou porque eu não consegui encontrá-lo."
Mas a fome não era nada comparada à sede. Um dia, depois que os russos saíram, o desespero por água quase matou Oleksii.
Ele rasgou os painéis de uma sauna na esperança de que pudesse haver água dentro dos canos. Conseguiu abrir um e bebeu um pouco do líquido que havia dentro, mas era anticongelante. Os poucos goles causaram queimaduras internas e foram quase fatais.
Então, em março daquele ano, quando as forças ucranianas retomaram partes de Vuhledar e chegaram à rua Sadova, outro vídeo da casa de Marina viralizou. Desta vez, mostrando o ex-soldado da Nova Zelândia Kane Te Tai entrando no número 17 e encontrando Oleksii.
'Apenas morte lá dentro'
"Nova Zelândia, Nova Zelândia, estou aqui!", gritou Oleksii gritou para o colega, que viajou para lutar pela Ucrânia. Te Tai morreu no campo de batalha apenas duas semanas depois.
Oleksii foi levado para fora da casa e levado para um local em segurança.
Ele conta que se tivesse permanecido apenas mais alguns dias ali não teria sobrevivido.
Sabe-se que vários outros soldados ucranianos e russos morreram dentro e ao redor da rua Sadova durante a batalha por Vuhledar.
"Graças a Deus, Oleksii sobreviveu. Mas o fato de que pessoas morreram na minha casa me chocou", diz Marina. "Há apenas morte lá dentro."
O Serviço Mundial da BBC questionou o Ministério da Defesa russo sobre o tratamento dado a Oleksii, mas não obteve resposta.
Meio ano após o resgate de Oleksii, seu captor russo era enaltecido em casa. Ele não era mais chamado por seu nome de guerra, Fima, mas por seu primeiro nome, Andrei.
Imagens da TV estatal russa mostram ele reencenando o ataque de Vuhledar e compartilhando suas experiências com crianças do ensino fundamental, sendo apresentado por professores como herói.
A BBC comparou essa filmagem com fotografias de Andrei de centenas de perfis de rede social e encontrou semelhanças - o mesmo corte de cabelo, a mesma pinta no pescoço e sinais claros de uma lesão na perna.
Seu nome completo é Andrei Efimkin - um jovem de 28 anos nascido no Extremo Oriente da Rússia.
Entramos em contato com ele e perguntamos sobre o vídeo feito na rua Sadova, especialmente sobre as fotos da família de Marina. Ele disse que estava fazendo um "truque psicológico" nele mesmo devido aos tiros que ouvia.
"Peguei o álbum e comecei a olhar as fotos para me distrair", disse.
"Sabe que, na verdade, eu me senti com sangue-frio. Por um segundo, para ser honesto, esses pensamentos passaram pela minha cabeça, sobre quem morava aqui."
Mas quando perguntado diretamente sobre Marina, Efimkin disse que não queria responder mais e encerrou a ligação.
Marina está agora na Alemanha e tenta construir uma nova vida, aprender um novo idioma e encontrar trabalho aqui e ali - mas ela ainda lamenta pela casa perdida em Vuhledar.
"É tão difícil. Ainda consigo ver minha casa nos meus sonhos, está sempre na minha cabeça. Ainda espero que a Ucrânia vença e tudo ficará bem, nós voltaremos", diz ela.
"Minha terra está lá, o ar é meu."
Mas na rua Sadova não resta quase nada da casa, que mais uma vez não é mais do que paredes.
É possível identificá-la em imagens de drones pelo azul da piscina, um contraste com os tons de cinza dos escombros do entorno.
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