As histórias e as dores se confundem, multiplicam-se. Assim como o luto, as incertezas e o medo. O 7 de outubro de 2023 ficará gravado na memória de todos os 8,8 milhões de israelenses e do mundo inteiro como o dia do horror. Era manhã de sábado. Os judeus celebravam o shabbat, dia sagrado e de descanso, que se estenderia até o pôr do sol. Os moradores de cidades e kibbutzim — pequenas comunidades coletivas — do sul de Israel estavam reunidos, em família, para orações e repouso. As sirenes antiaéreas tocaram. No entorno da fronteira com a Faixa de Gaza, não era algo incomum. Todos conheciam os procedimentos de segurança: buscar um quarto seguro ou um bunker e se proteger dos foguetes disparados pelo grupo terrorista Hamas.
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No kibutz Re'im, a 5km da fronteira com Gaza, milhares de jovens se divertiam na Supernova Sukkot, uma festa de música eletrônica ao ar livre. De repente, foguetes cruzaram o céu e se misturaram com terroristas fortemente armados a bordo de parapentes. Outros extremistas chegaram em vans, disfarçados com uniformes militares. Executaram, a sangue-frio, mais de 300 pessoas. Depois de explodirem a cerca de aço que separa Gaza de Israel, mais terroristas alcançaram as comunidades vizinhas e fuzilaram o que encontraram pelo caminho. Motoristas foram surpreendidos em rodovias e mortos. Cerca de 2 mil extremistas invadiram casas, assassinaram famílias e queimaram imóveis. Houve relatos de estupros. Como se fossem animais, 251 israelenses foram sequestrados e levados até Gaza sobre motocicletas e na caçamba de camionetas. Pelo menos 97 seguem no cativeiro.
Naquela manhã, 1.139 pessoas tiveram a vida ceifada — 695 civis israelenses, incluindo 36 crianças; 373 militares e 71 estrangeiros, entre eles quatro brasileiros. O massacre sem precedentes em Israel levou o governo de Benjamin Netanyahu a enviar tropas à Faixa de Gaza para combaterem o Hamas. A campanha militar deixou 41 mil mortos. O Correio entrevistou israelenses que tiveram familiares sequestrados e mortos e um brasileiro que se escondeu sob uma pilha de corpos para sobreviver. Os depoimentos são em primeira pessoa.
"Não existe vitória real sem os reféns de volta"
"Somos uma família de dois homens e duas mulheres. Eu e minha esposa, Sharon Hertzman, 52, temos dois filhos, Omer, um rapaz de 17 anos, e Noam, uma garota de 12. Na manhã de 6 de outubro, Noam e Sharon nos disseram que gostariam de ir até o kibutz Be'eri, a menos de 5km da fronteira com a Faixa de Gaza. Nós preferimos ficar e elas partiram (uma viagem de 102km). No dia seguinte, fui acordado por minha mãe. Não acordamos com o barulho das sirenes antiaéreas. Ela me disse: 'É melhor você ligar a televisão'. Fizemos isso e vimos que algo estava acontecendo. Desde então, perdemos o contato com as garotas. Durante as duas primeiras semanas, elas foram consideradas desaparecidas. Então, recebemos a informação de que elas tinham sido sequestradas e levadas para a Faixa de Gaza.
À época do evento, eu tinha 11 familiares no kibutz Be'eri. Três deles foram assassinados; sete, sequestrados — incluindo Noam, Sharon e minha sogra, Ruth Munder, 78, que resistiu ao Holocausto. Ruth se diz sobrevivente duas vezes. Em 24 de novembro, durante o primeiro acordo de cessar-fogo, seis deles foram libertados pelo Hamas. Tal Shoham, 38, marido de minha sobrinha, ainda está lá e nós lutamos por ele.
É muito importante frisar que o Hamas é um grupo terrorista. Eles são como os nazistas. Soldados israelenses encontraram, em escolas de Gaza, o livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, traduzido para o árabe. Eles usam métodos e ideologia nazistas. Temos certeza de que Israel faz o melhor que pode, militarmente, e evita machucar civis. Infelizmente, da forma mais dura, percebemos que a pressão militar tem matado civis. Netanyahu precisa fazer todo o possível para libertar os reféns, por meio de um acordo. Infelizmente, digo de forma dolorosa: nosso primeiro-ministro não faz o suficiente para salvar os sequestrados. Muitos reféns estão nos túneis de Gaza, sem ar, sem comida, sem água. O governo Netanyahu deveria fazer mais para tirá-los de lá. Não existe vitória real sem os reféns de volta."
Hen Avigdori, 54 anos, roteirista, morador de Hod Sharon, 22km a nordeste de Tel Aviv. A esposa, Sharon, e a filha, Noam, ficaram 48 dias no cativeiro, em Gaza. Ele parou a carreira para lutar pela libertação dos reféns
"Nenhum de nós tem feito o bastante pelos sequestrados"
"Em 7 de outubro de 2023, eu estava em casa, em Ganei Tikva (centro de Israel), quando as sirenes começaram a tocar. Eu telefonei para a minha mãe, a fim de saber se meus familiares estavam bem. Ela contou-me que meu irmão, Or, e a esposa, Einav Levy, tinham ido ao festival de música Supernova Sukkot. A princípio, não ficamos muito preocupados, porque, quando os ataques com foguetes começaram, eles nos disseram que estavam voltando para casa. Uma hora mais tarde, Or ligou para minha mãe e disse que estavam se dirigindo a um bunker, não muito distante do local do festival. Dentro do bunker, ele voltou a telefonar para minha mãe. Estava completamente aterrorizado. Ela perguntou-lhe o que estava acontecendo. Ele só repetia a frase: 'Mamãe, a senhora não vai querer saber o que está acontecendo aqui'. Foi a última coisa que ouvimos dele.
Poucos minutos depois, um grupo de terroristas chegou e começou a fuzilar o bunker. Or presenciou Einav ser assassinada, antes de ele ser levado para Gaza. Desde aquele dia, começamos a procurar por eles. No início, pensamos que estivessem desaparecidos. Dias depois, soubemos o que tinha ocorrido. Para mim, o último ano tem sido como um dia longo e ruim. Eu me sinto doente. É como se fosse um pesadelo. Acordo de manhã tentando lutar pela libertação do meu irmão e dos outros reféns. Não recebo assistência psicológica, mas acho que precisarei, depois de encerrar essa luta.
O fato de os reféns ainda estarem em Gaza significa que nenhum de nós tem feito o bastante — nem eu, nem a imprensa, nem o governo israelense, nem a comunidade internacional. Temos que fazer mais. Isso não é apenas uma questão sobre israelenses e palestinos. É um tema mundial, um confronto entre o bem e o mal. Dessa vez, foi Israel. Da outra, pode ser qualquer país."
Michael Levy, 41 anos, irmão de Or Levy, 33, morador de Ganei Tikva (centro). Or foi sequestrado durante o festival Supernova Sukkot e está em poder do Hamas, em Gaza, há 365 dias. Almog, 3 anos, filho de Or, agora órfão de mãe, está sob os cuidados dos avós
"Do nada, desmaiei. Quando acordei, estava debaixo de vários corpos"
"Cheguei a Israel em maio, cinco meses antes do atentado para morar, em busca de uma qualidade de vida melhor, de mais segurança e de uma remuneração melhor. Eu conhecia o país. No Brasil, tentaram me assaltar duas vezes à mão armada. Em julho de 2023, conheci o também brasileiro Ranani Glazer. Ele me contou que haveria uma versão brasileira do festival Universo Paralelo, criado pelos pais do DJ Alok. Fomos à festa, juntos, eu, Ranani e a namorada dele, Rafaela Treistman. A festa reuniu 3 mil pessoas do mundo inteiro e de todas as religiões. O evento prega a paz, o amor, coisas boas, a coexistência. Ele começou a zero hora de sábado e terminaria às 16h.
Por volta das 6h30, eu estava sozinho, dançando em frente ao palco e comecei a ouvir barulhos como se fossem fogos de artifício. Olhei para cima e vi vários mísseis passando por cima de nossa cabeça. Eles interromperam a festa e falaram 'Código vermelho! Código vermelho!'. Eu fiquei um minuto agachado, olhei para o lado, vi gente correndo, chorando, filmando. Saí correndo para a barraca e encontrei Ranani e Rafaela. Corremos em busca de um bunker. Na estrada, pegamos carona com um casal que estava na festa. Eles nos deixaram em um bunker, a menos de dois minutos do local do festival Supernova Sukkot. Era em um ponto de ônibus e não tinha portas. Do nada, começou a chegar muita gente da festa. Em um bunker que cabia 15 pessoas, no fim das contas, tinha 40.
Depois de um tempo, (os terroristas) atiraram no bunker, jogaram granadas, dois policiais tentaram lutar contra eles. Mataram os policiais e começaram a gritar 'Allahu Akbar! Allahu Akbar!' ('Deus é grande!', em árabe), sem parar. Atacaram o bunker com gás, granadas e tiros. Uma das vezes que olhei para o lado, vi o Ranani sendo atingido e morrendo. Meu amigo morreu. Do nada, desmaiei. Quando acordei, estava debaixo de vários corpos, me fingindo de morto, até que um menino me resgatou. Quando saí, dei de cara com uma pilha de corpos pegando fogo. Ao dar a volta nessa fogueira, vi seis policiais. De lá, fui resgatado. Eu e a Rafa sobrevivemos. Das 40 pessoas que estavam no bunker, nove sobreviveram.
Três semanas depois, voltei para o Brasil, no último voo da Força Aérea Brasileira (FAB). Tem sido muito complicado aqui no Brasil, pois existe um debate político sobre o conflito. Nada a ver. Sempre comento que vemos uma guerra contra o terrorismo. É uma guerra entre terroristas e Israel, não entre Israel e Palestina ou entre Israel e Líbano. Me estranha o questionamento sobre o fato de Israel ter ou não o direito à defesa. O que aconteceu foi um ato de terrorismo, não de resistência. Ao longo deste último ano, tenho trabalhado na ONG StandWithUs, cujo objetivo é educar para a paz. Tenho dado palestras e contado o que aconteceu. Em Israel, todos sentem que o retorno dos reféns é o principal. A gente entende que a guerra tem que acabar logo, mas com a volta dos reféns."
Rafael Zimerman, 28 anos, brasileiro, sobrevivente do ataque ao festival de trance Supernova Sukkot, analista educacional da ONG StandWithUS
"Minha prima foi executada depois de sobreviver por 11 meses"
"Eu estava em Tel Aviv, minha cidade natal. Acordei às 6h30 com as sirenes. Achei que fossem alarmes rotineiros. Fechei a porta e as janelas e transformei meu dormitório em um quarto seguro. Minha namorada e eu voltamos a dormir. Acordamos 90 minutos depois para sabermos que ocorria um ataque no sul do país. Eu não me preocupei, porque isso tinha acontecido muitas vezes. Comecei a receber mensagens de texto e vídeos sobre o que ocorria no kibutz de Be'eri, na fronteira com Gaza. Em alguns vídeos, um jornalista palestino ficava dentro do kibutz, falando em árabe, e muitos terroristas caminhavam, atrás da câmera. Era algo muito incomum. Eles carregavam armas pesadas e usavam motocicletas.
Tentei contato com familiares em Be'eri, mas eles não responderam. Por volta de 12h30 (hora local), recebemos uma mensagem de meu tio. Ele disse que estava trancado no banheiro, em sua casa, e não conseguia contato com os outros familiares. Depois, soubemos o que houve. Sua mulher estava na cozinha, quando os terroristas invadiram a residência. Trinta e seis horas depois, vi um vídeo, no Telegram, em que eles arrancaram minha tia de casa e a executaram do lado de fora. Eles também sequestraram minha prima, Carmel Gat.
No quarto seguro da mesma casa, estavam um outro primo, Alon; a esposa, Yarden; e a filha deles, Geffen, de 2 anos. Eles os colocaram em um carro e os levaram para Gaza. Cerca de 500m antes da fronteira, conseguiram pular do carro. Alon pegou Geffen nos braços e, ao olhar para trás, viu Yarden escondida entre as árvores, se esquivando das balas disparadas contra ela, com as mãos atrás da cabeça. Ela foi recapturada pelo Hamas. Alon decidiu prosseguir para salvar a filha. Ambos chegaram ao kibutz Kfar Aza às 7h do dia seguinte. Soubemos que três familiares estavam desaparecidos. Minha tia e as duas filhas. Essa tia foi assassinada dentro do kibutz.
No acordo de novembro, Yarden foi liberada e estava bem. Soubemos, por meio de dois outros reféns que voltaram, que Carmel estava viva e atuava como uma instrutora de ioga e meditação no cativeiro. Em agosto, recebemos a mensagem de que Carmel tinha sido assassinada em Gaza. Nas últimas três semanas, antes de ser morta, viveu da pior e mais horrível forma possível, em um túnel minúsculo, sem ar, sem luz. Teve que urinar diante dos olhares dos terroristas. Nunca saberemos o que mais fizeram com ela. Quando perceberam a presença dos militares israelenses de fora do túnel, decidiram executá-la e a outros cinco reféns. O fato de Carmel ter sido assassinada depois de 11 meses sobrevivendo no cativeiro é inacreditável. Ela está morta, sua história terminou. Nem sequer pudemos dizer-lhe que sua família sobreviveu. Ela viu a mãe assassinada. Não saberemos como ela passou os dias durante os 11 meses. Nunca saberemos nada sobre ela. Minha sensação é de fracasso completo."
Gil Dickmann, 32 anos, estudante de psicologia, morador de Tel Aviv. Quatro familiares foram sequestrados pelo Hamas. Dois, executados; e dois libertados
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