"Quando a água começou a subir, veio como uma onda. Foi como um tsunami."
Essas são as palavras de Guillermo Serrano Pérez, de 21 anos, morador de Paiporta, perto de Valência, na Espanha
Guillermo é uma das milhares de pessoas que sofreram os efeitos devastadores da Dana (Depressão Isolada em Altos Níveis), fenômeno comum no Mediterrâneo. Trata-se da tempestade que, entre terça e quarta-feira (dias 29 e 30), causou inundações em várias regiões do leste e sudeste de Espanha.
As chuvas deixaram ao menos 158 mortos e dezenas de desaparecidos, a maioria em Valência, mas também nas comunidades de Castela-La Mancha e Andaluzia.
Este jovem estava dirigindo na estrada com os pais dele na noite de terça quando foram surpreendidos por uma tromba d’água.
Para sobreviver, eles abandonaram o veículo e subiram em uma ponte.
A correspondente da BBC em Valência, Bethany Bell, informa que em Paiporta, onde dezenas de pessoas morreram nas enchentes, lojas, casas e empresas estão devastadas. Em uma rua, ela presenciou o momento em que agentes funerários encontraram um corpo.
Parado do lado de fora dos destroços da farmácia dele, o farmacêutico Miguel Guerrilla diz:
"Todos nós conhecemos alguém que morreu.É um pesadelo".
Voluntários chegaram para ajudar na limpeza, mas é um trabalho sombrio. Enquanto a repórter caminha pela vila, avista uma van de serviços funerários chegar para recolher outro corpo.
Do alerta ao pânico
A força das correntes de água surpreendeu muitos, incluindo a família de Guillermo, apesar de chuvas intensas terem atingido a área durante horas e diversos alertas terem sido emitidos.
Na manhã de terça-feira, por volta das 7h, no horário local (2h, no horário de Brasília), a agência meteorológica espanhola Aemet alertou que estavam previstas chuvas torrenciais para a região de Valência.
"Extrema cautela! O perigo é extremo! Não circulem, a menos que seja absolutamente necessário", afirmou a agência num comunicado na rede social X, pouco antes de emitir um "alerta vermelho máximo".
Mais alertas foram emitidos ao longo do dia e as autoridades locais foram orientadas a impedir que as pessoas se aproximassem das margens do rio.
Às 15h20, no horário local, o centro regional de coordenação de emergências já publicava imagens de ruas completamente inundadas nos municípios de La Fuente e Utiel, a oeste de Valência.
Poucas horas depois, ele indicou que vários rios da região estavam cheios e pediu às pessoas que se afastassem das margens.
Mas, na maioria dos lugares, já era tarde demais.
Chiva, a cerca de 20 km de distância, foi uma das primeiras cidades atingidas pela fúria das inundações repentinas.
O profundo barranco que atravessa a cidade continuava cheio de água desde a tarde de terça-feira, após as fortes chuvas.
Por volta das 18h, as ruas haviam se transformado em rios, com a força da água levando carros, postes de luz e bancos.
Os serviços de emergência correram para prestar socorro em toda a região, mas a água invadiu as ruas com uma velocidade sem precedentes.
“De repente, caiu uma chuva muito forte... e a água subiu um metro ou um metro e meio em poucos minutos”, explicou o prefeito da cidade de Riba-roja de Túria.
Em outras partes da região, começaram a se espalhar notícias de pessoas desaparecidas após serem arrastadas pelas águas.
No entanto, a Proteção Civil só enviou aviso aos moradores da região valenciana para desencorajá-los de circular nas estradas mais de duas horas depois, após as 20h.
Muitos questionaram o momento do aviso, mais de 12 horas depois de a agência meteorológica espanhola ter emitido o seu primeiro alerta vermelho.
Alguns criticaram que o aviso chegou tarde demais para que as pessoas procurassem abrigo nos andares superiores dos imóveis ou saíssem das estradas, que estavam lotadas de passageiros voltando do trabalho para casa.
'A água arrancou a minha roupa'
Paco estava dirigindo de Valência para a cidade vizinha de Picassent quando foi surpreendido por enchentes que engoliram as estradas.
Ele disse ao jornal “El Mundo” que “a velocidade da água era uma loucura”, pois a correnteza arrastava os veículos no caminho dele: “A pressão era tremenda. Consegui sair do carro e a água me empurrou contra uma cerca onde me segurei, mas não conseguia me mover”.
“Ela não deixava. “Ela arrancou as minhas roupas”, lembra ele.
Patricia Rodríguez, da cidade de Sedaví, também foi surpreendida pelas enchentes enquanto voltava do trabalho para casa.
Segundo contou à imprensa local, a água começou a subir quando ela estava num engarrafamento perto de Paiporta e os carros começaram a flutuar.
“Tínhamos medo que o rio transbordasse porque estávamos na região mais perigosa”, explica.
Ela conseguiu escapar a pé com a ajuda de outro motorista e observou, aterrorizada, como um jovem que estava próximo carregava um bebê recém-nascido para um local seguro.
“Menos mal que ele não escorregou porque senão a corrente teria nos levado embora”, explica.
Sete horas agarrado a uma palmeira
Publicações nas redes sociais ajudam a entender o caos que tomou conta da região ao anoitecer.
Um vídeo compartilhado no X mostra idosos em cadeiras de rodas de um asilo em Paiporta presos numa sala de jantar com água marrom até aos joelhos.
Na mesma rede social, Rut Moyano, moradora de Benetússer, perto de Valência, relatou a situação cada vez mais desesperadora da cidade. Ela diz que se refugiava com vizinhos nos andares superiores do seu prédio onde mora quando um deles sofreu um ataque cardíaco e morreu.
"A Guarda Civil chegou a pé, mas não conseguiu acessar o imóvel porque há um carro preso no portão. Alguém sabe me dizer se a ajuda está a caminho?”, diz o post feito na rede social.
Na manhã de quarta-feira, a luz do dia revelou toda a extensão da devastação, com centenas de carros empilhados uns sobre os outros, empresas destruídas e cidades inteiras cobertas de lama e escombros.
Em Valência, Juliano Sánchez foi resgatado com sintomas de hipotermia após ficar agarrado a palmeiras durante sete horas.
“Eu não queria morrer”, disse ele ao “El Periódico”. “Segurei-me com todas as forças em algumas palmeiras para que o rio não me arrastasse.”
Mas muitos tiveram menos sorte.
Dezenas de pessoas continuam desaparecidas em toda a região, enquanto aqueles que sobreviveram descreveram a sua impotência frente à terrível destruição.
“Vimos dois carros sendo arrastados pela correnteza e não sabemos se havia pessoas lá dentro”, explicou um homem à publicação “Las Provincias”. “Nunca vimos nada assim.”
'Foi devastador': o testemunho de uma colombiana que foi atingida pela tempestade com sua família
“Deixei meu carro na avenida ontem à tarde e não sei onde ele está.”
Este é o depoimento dado à BBC Mundo pela colombiana Victoria López, que mora no bairro La Torre, na capital Valência, com o marido e a filha de 9 anos.
Na tarde de terça-feira, Vitória, que dá aulas de reforço escolar para crianças, não tinha ideia do que estava por vir no bairro dela.
“Ontem foi uma tarde bonita porque fizemos uma atividade de Halloween com as crianças, preparei coisas de Halloween e foi uma tarde muito agradável. Às 7h, os pais vieram buscar as crianças e tudo estava normal”, conta.
Ela lembra que ventava muito e um amigo a alertou sobre o aviso da Dana, que ameaçava uma grande área do sul e leste do território espanhol.
“Ele me perguntou onde eu tinha estacionado o carro e eu disse que era no meio da avenida. Desci e tudo parecia normal. A rua estava completamente seca, nem uma gota d'água. Então, pensei o que todos nós pensamos: ‘Eles estão exagerando, não será para tanto’”.
Victoria garante que, a partir daquele momento, tudo aconteceu muito rapidamente. Quando tentou voltar novamente para a rua, o acesso foi inundado com água que chegava a uma altura de um metro e meio.
“Depois vimos carros flutuando. Não é que eles estivessem se movendo por causa da água. Eles estavam completamente flutuando. Foi algo incrível de ver, não podíamos acreditar”, diz.
Victoria mora no quinto andar, então o apartamento dela era seguro. Sua principal preocupação era o carro da família.
“Vimos um vizinho nadando na água no meio da rua e eu disse ao meu marido: 'Olha os carros, o nosso sumiu' e até agora não sabemos onde está o nosso carro”, diz ela.
“Ainda estamos com água até os joelhos; “O meu marido foi com uma amiga procurar o carro e estão a quase um quilómetro de distância, mas nada, ainda não sabemos onde está”, lamenta.
Ele explica que ajudou alguns vizinhos do bairro que ficaram desabrigados.
“Recebi todos em casa e eles passaram a noite connosco, porque, claro, para onde iam? Somos um dos poucos edifícios com energia, internet e água potável. Sinto-me grata, embora tudo isso ainda seja muito forte”, declara.
Ela acrescenta que a coisa mais chocante que viveu nas últimas 24 horas “é perceber que você está preso em sua casa enquanto isso acontece lá fora e vê imagens e vídeos na internet”.
“Quando você desce e vê os carros destruídos e as pessoas tristes, você realmente assimila que em um segundo a sua vida muda. Você se sente desamparado porque sabe que seus amigos estão com problemas e não pode sair para ajudá-los”, diz.
A cidade de Valência, onde vive a família de Victoria, foi parcialmente afetada pela tempestade, embora não tanto como outras localidades da região como Torrent, Chiva, Alfafar ou Paiporta. Só nesta última, foram registradas pelo menos 34 mortes e foi declarada uma “emergência humanitária”.
“Eu me sinto com sorte. Tenho uma amiga que mora num porão e perdeu tudo: a casa, as coisas, as lembranças. “Foi devastador”, diz ela em meio às lágrimas.