ELEIÇÕES 2024

Eleição acirrada em Fortaleza: como bolsonarista ameaça interromper 20 anos de prefeituras de centro-esquerda

André Fernades (PL), de 26 anos, moderou discurso na disputa pela capital cearense com Evando Leitão (PT)

Bolsonaro participou da motociata no início da campanha de Fernandes -  (crédito: Reprodução Instagram)
Bolsonaro participou da motociata no início da campanha de Fernandes - (crédito: Reprodução Instagram)

Um candidato bolsonarista de apenas 26 anos, com forte presença nas redes sociais e jingles virais, ameaça interromper duas décadas de hegemonia da centro-esquerda em Fortaleza, capital que nas últimas cinco disputas municipais elegeu prefeitos de PT, PSB ou PDT.

O deputado federal André Fernandes (PL), que na Câmara dos Deputados se destaca entre os principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, chegou ao segundo turno moderando seu discurso e "escondendo" essa aliança na reta final da campanha, apontam cientistas políticos do Ceará ouvidos pela reportagem.

A estratégia, explicam os entrevistados, foi necessária para furar a bolha bolsonarista e atrair outros perfis de eleitor, em uma cidade em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva derrotou Bolsonaro com certa vantagem na eleição de 2022 (58,18% a 41,82%).

Mas, apesar do histórico lulista de Fortaleza, Fernandes terminou na frente no primeiro turno, com 40% dos votos válidos, contra 34% do segundo colocado, o mais experiente Evandro Leitão (PT), de 57 anos, deputado estadual e presidente da assembleia legislativa cearense, que se licenciou do cargo para disputar a prefeitura.

Já as pesquisas de segundo turno têm dado, em sua maioria, empate técnico, com Fernandes numericamente à frente. O levantamento do Instituto Datafolha divulgado nesta quinta-feira (17/10), por exemplo, deu o candidato do PL com 45% das intenções de voto, e o petista com 43% — a margem de erro é de três pontos percentuais.

A campanha petista tem adotado a estratégia oposta a do bolsonarista, exibindo ao máximo o apoio de Lula, que já voltou à cidade para ato de campanha no segundo turno.

Outro importante cabo eleitoral tem sido o ex-governador do Ceará e atual ministro da Educação, Camilo Santana (PT).

Os analistas entrevistados, porém, dizem que não está claro se a estratégia de colar em Lula será capaz de virar o jogo.

Para eles, a liderança de Fernandes no primeiro turno reflete um desejo de mudança que domina a eleição em Fortaleza, em contraste com a alta taxa de reeleição registrada no primeiro turno país afora (81% dos prefeitos que tentam um segundo mandato foram confirmados no cargo).

Segundo o cientista político Cleyton Monte, diretor de Extensão e Inovação do Instituto Centro de Ensino Tecnológico (Centec), há um desgaste natural do campo da centro-esquerda após anos governando Fortaleza e o Ceará, agravado pela piora da segurança pública e o mal desempenho do último prefeito, José Sarto (PDT), que não chegou ao segundo turno — um dos motivos foi a criação de uma impopular taxa do lixo, para custear a limpeza urbana.

Monte nota que a direita vem se fortalecendo na capital e na região metropolitana desde o movimento pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, processo que deu espaço para a ascensão de figuras como Capitão Wagner (União Brasil), que teve votações expressivas nas duas disputas anteriores pela prefeitura, e André Fernandes.

O candidato do PL ganhou notoriedade ainda adolescente, com vídeos de humor controverso no YouTube, pelos quais chegou a se desculpar na campanha deste ano, e estreou na política como deputado estadual mais votado em 2018. Dois anos depois, chegou à Camara Federal também como o mais votado do Ceará.

O Estado vinha dominado, desde 2007, pela aliança entre o PT e os Ferreira Gomes — família dos ex-governadores e irmãos Ciro Gomes (PDT) e Cid Gomes (PSB), que romperam após as eleições de 2022, abrindo uma crise no domínio político cearense. Ainda assim, o Ceará segue sob comando do PT, com Elmano de Freitas.

Já Fortaleza, passou por dois governos petistas com Luizianne Lins (2005-2013), dois governos de Roberto Claúdio (2013-2020), que transitou por PSB, PROS e PDT durante sua gestão, e um mandato de José Sarto (PDT), que fracassou na tentativa de reeleição.

Numa amostra clara do racha nesse campo, Roberto Cláudio declarou apoio a Fernandes no segundo turno, enquanto Sarto ficou neutro.

"O discurso da violência urbana é muito impactante em Fortaleza, uma cidade atravessada pela territorialização de facções criminosas. Isso criou um desgaste grande desse grupo de centro-esquerda que governa o Ceará", analisa Cleyton Monte.

"Esse desgaste possibilitou a ascensão de nomes como o André Fernandes, uma figura advinda das redes sociais, que tem apelo com o eleitor jovem e também uma articulação com igrejas, vindo de família evangélica", ressalta.

O candidato do PL supera 6 milhões de seguidores somando Instagram, TikTok, Facebook, Youtube e Twitter, enquanto o petista tem cerca de 250 mil considerando as mesmas plataformas.

Bolsonaro abre campanha e some: 'o candidato sou eu!'

Bolsonaro ao lado de Fernandes durante ato de campanha
Reprodução Instagram
Bolsonaro participou da motociata no início da campanha de Fernandes

Enquanto Lula é frequente na propaganda eleitoral petista e já compareceu a comício de Leitão no segundo turno, Bolsonaro participou apenas do primeiro ato de campanha de Fernandes, em agosto, uma motociata pela cidade.

Naquele momento, nota a cientista política Monalisa Torres, professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e pesquisadora do Laboratório de Política, Eleições e Mídia da Universidade Federal do Ceará (UFC), seu apadrinhamento era importante para o candidato do PL atrair, por exemplo, eleitores do Capitão Wagner, candidato do União Brasil que liderou o campo conservador em eleições anteriores e terminou em quarto lugar neste ano.

Depois, ressalta a professora, a estratégia foi de "descolamento do Bolsonaro" e foco em propostas para a cidade.

"Ele tenta evitar a nacionalização [da eleição local], exatamente o oposto do que a campanha do Leitão vem fazendo", destaca.

A campanha petista tem reforçado a pecha de candidato bolsonarista do adversário, lembrando sua postura contra a vacinação obrigatória na pandemia de covid-19; a defesa da cloroquina contra a doença, apesar da ciência não apontar sua eficácia; e o episódio em que ele foi condenado a indenizar a jornalista Patrícia Campos Mello, do jornal Folha de S.Paulo, após divulgar falsamente que ela teria oferecido favores sexuais em troca de informações jornalísticas negativas para o então presidente Bolsonaro.

Fernandes também chegou a ser investigado, sob suspeita de instigar os atos de 8 de janeiro, quando bolsonaristas inconformados com a eleição de Lula invadiram as sedes dos Três Poderes em Brasil, mas a Procuradoria-Geral da República depois se manifestou pelo arquivamento do caso.

"Eu quero é que o André Fernandes mostra a cara e mostre o Bolsonaro aqui em Fortaleza", provocou Camilo Santana, ao lado de Leitão, logo após o resultado do primeiro turno.

Ao que Fernandes respondeu em suas redes sociais com um vídeo intitulado: "O candidato sou eu!".

Na gravação, que reproduz trecho de uma entrevista sua ao jornal local Jangadeiros, o candidato do PL desconversa sobre eventual participação de Bolsonaro na reta final de sua campanha e rebate Santana: "Eu desafio o ministro a deixar o Evandro [Leitão] fazer a campanha dele sozinho, sem três bengalas [em referência a Lula, Santana e Elmano de Freitas], para mostrar o André no meio do povo e Evandro no meio do Povo".

A acusação das "três bengalas" contra o petista têm sido a resposta padrão do bolsonarista quando cobrado sobre seu padrinho. Leitão, por sua vez, responde reforçando suas alianças.

"Muito me orgulha estar no projeto de Lula, Camilo e Elmano, que são pessoas reconhecidas. Em um ano e oito meses, o governador Elmano, juntamente com o governo federal, com o presidente Lula, retirou da linha da extrema pobreza 600 mil cearenses", disse, no primeiro debate do segundo turno, na TV Bandeirantes.

Polarização x propostas para a cidade

Para a cientista política Monalisa Torres, a estratégia de campanha de Leitão de colar seu nome ao de Lula e de Camilo Santana foi fundamental para alavancá-lo na corrida eleitoral e colocá-lo no segundo turno.

Ela acredita, no entanto, que isso pode ser insuficiente para ganhar a disputa.

Na leitura de Torres, Fernandes foi bem-sucedido no primeiro turno justamente ao evitar a polarização nacional entre Lula e Bolsonaro e focar sua campanha em propostas com apelo entre os mais pobres, em áreas como saúde, educação e segurança. Ele foi o mais votado nas periferias, no primeiro turno.

"Não estou entrando no mérito das propostas, se realmente são boas soluções para os problemas da população, mas vejo que, ao focar num tom mais propositivo, a campanha dele conseguiu furar a bolha bolsonarista", analisa.

"É um nome que chega com muita força e o PT vai ter dificuldade de virar essa votação aqui", disse ainda.

Leitão no centro de Lula e Camilo Santana, em comício de campanha
Reprodução do Instagram
Leitão aposta no apoio de Lula e Camilo Santana para virar disputa contra Fernandes

Entre as propostas de Fernandes está parcerias com clínicas e creches privadas para ampliar a oferta de atendimento à população, em vez de ampliar o número de unidades públicas, como costuma defender a esquerda.

Ele também traz outras pautas tipicamente bolsonaristas, como intensificar o uso da Guarda Municipal na segurança pública ou combater uma suposta indústria de multas no trânsito.

Uma das propostas é acabar com a penalidade para motoqueiros que andam com viseira levantada, sob o argumento de que Fortaleza é uma cidade quente – embora a infração esteja prevista no Código Nacional de Trânsito, uma lei federal que só pode ser alterada pelo Congresso.

A reivindicação vem de uma categoria de trabalhadores de renda baixa e com forte interlocução com o campo bolsonarista.

Por outro lado, há temas em que Fernandes reviu seu posicionamento, se afastando da agenda da direita mais radical.

Um exemplo foi sua fala a favor das vacinas no primeiro debate do segundo turno, na TV Bandeirantes, em contraste com sua tentativa de proibir a vacinação obrigatória durante a pandemia de covid-19, com um projeto de lei quando era deputado estadual, época em que chegou a chamar o então governador de São Paulo, João Dória, de "ditador a serviço da China" por trazer o imunizante Coronavac ao país.

Ao ser cobrado agora sobre o tema, respondeu: “Eu me vacinei, e não só me vacinei como você que está me assistindo sabe que também aos finais de semana, os postos de saúde serão abertos para fazer uma ampla imunização de acordo com todo o programa do Ministério de Saúde, vacinando principalmente os grupos de risco, crianças e idosos”, afirmou.

Outro exemplo foi sua decisão de apoiar a educação sexual nas escolas, algo que costuma sofrer oposição do campo conservador. Segundo ele próprio relatou na campanha, antes via o tema dentro de uma ótica de "ideologização de gênero". Depois, passou a entender como uma política importante para prevenção de abusos sexuais.

"Eu não tô falando aqui sobre chegar para nossas crianças para dizer 'você vai ser isso, você pode ser aquilo'. O que eu tô dizendo é: 'ei, criança, se você passar isso aqui, é um abuso, denuncie, fale, encontre os sinais'. Da mesma maneira, os professores têm que estar atentos para perceber esses sinais, que às vezes é difícil a criança saber verbalizar", afirmou, em entrevista ao Diário do Nordeste, ao explicar sua proposta de criar o programa Criança Blindada.

Em entrevista à BBC News Brasil, o coordenador da campanha petista, o deputado estadual Guilherme Sampaio (PT), contesta o argumento de que Fernandes seja um candidato mais propositivo que Leitão.

"Do ponto de vista propositivo, o André pode ser muito versátil em fazer proposta para lacrar na rede social, mas, do ponto de vista de conteúdo e capacidade de tornar políticas públicas benefícios concretos para a população, nada se compara a capacidade do Evandro", disse, destacando a experiência do aliado, que foi secretário do Trabalho e Desenvolvimento Social de 2011 a 2013, no governo Cid Gomes.

Sampaio reconhece que o primeiro turno deixou claro um desejo de mudança do eleitorado, mas reforça que Sarto rompeu com o PT em 2022, colocando o Leitão como uma mudança de rumo em relação à atual gestão.

"O Evandro é a continuidade do que é bom, essa é a realidade. O Evandro é o Bolsa Família, é o programa Ceará Sem Fome, que vai ter o Fortaleza Sem Fome [em seu eventual governo]. O André representaria um retorno do que não presta. O retorno da ameaça de privatização da educação, da ameaça de desmonte do Sistema Único de Saúde, da ameaça à cultura, que foi extinta no governo Bolsonaro", disse ainda Sampaio.

Algumas propostas do petista, porém, se assemelham com as de Fernandes, como a promessa de ampliar o uso da Guarda Municipal na segurança pública e a intenção de firmar parcerias com clínicas de saúde privadas.

As propostas do petista incluem também a criação do programa Pé-de-Meia municipal, que pagaria um benefício para alunos do 9º ano concluírem seus estudos, iniciativa similar à lançada pelo governo Lula neste ano.

Sua campanha promete, ainda, ampliar o passe livre estudantil para os fins de semana, criar um aplicativo para marcar consultas e emitir receitas médicas online, zerar filas nas creches e estabelecer faixas exclusivas para motos.

A BBC News Brasil também solicitou entrevista à campanha de Fernandes, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.

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BBC
Mariana Schreiber - Da BBC News Brasil em Brasília
postado em 18/10/2024 07:18 / atualizado em 18/10/2024 07:25
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