O contrato da Enel em São Paulo está no centro de uma disputa política após um temporal no dia 11 de outubro deixar mais de 1,5 milhão de domicílios sem energia elétrica na região metropolitana — na segunda-feira (14/10), 537 mil imóveis ainda continuavam sem fornecimento de luz.
O apagão se transformou em queda de braço entre município, estado e governo federal.
O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), cobrou intervenção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para romper o contrato com a Enel.
Adversário de Nunes nas eleições municipais, Guilherme Boulos (PSOL) culpou a prefeitura pelo “caos” na capital paulista.
O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), acusou Nunes de mentir sobre renovação do contrato com a Enel e disse que uma eventual ruptura dependeria do “devido processo legal”.
A empresa italiana tem sido alvo de críticas, com outros dois apagões na capital paulista em menos de um ano.
Em novembro de 2023, cerca de 3,7 milhões de pessoas ficaram sem luz após fortes chuvas na região metropolitana de São Paulo. A empresa demorou até seis dias em algumas regiões para estabelecer a energia.
Em março deste ano, foi a vez dos moradores do centro da capital paulista, inclusive a Santa Casa, ficarem sem luz.
A distribuidora de energia também acumula reclamações em outros estados onde tem contratos, como no Ceará, onde o Ministério Público instaurou procedimento contra a empresa para apurar possível piora do serviço.
Na Assembleia Legislativa, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi aberta para investigar a conduta da empresa.
Uma nota técnica feita pelo Tribunal de Contas do Município de São Paulo, o TCM-SP, encaminhada à Aneel, disse ter identificado "graves falhas" no cumprimento de metas de investimento e na qualidade do atendimento.
O órgão sugeriu a realização de auditorias externas, maior transparência nos indicadores de desempenho e a criação de um plano de contingência para situações de emergência. (Leia nesta reportagem os principais pontos indicados pelo TCM-SP).
A BBC News Brasil consultou especialistas para entender se é possível quebrar esse contrato, que vai até 2028, e em quais cenários isso ocorreria.
É possível quebra de contrato de concessão?
O contrato de concessão com a Enel foi firmado em outubro de 1998, com prazo de 30 anos. O documento prevê a possibilidade de prorrogação por mais 30 anos a critério da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em caso de solicitação da concessionária.
A quebra do contrato antes do término do prazo pode ocorrer de algumas formas, segundo especialistas.
Uma delas é chamada de encampação, quando a União decide retomar os serviços antes do término do contrato. Neste caso, a concessionária deve receber indenização.
Já a caducidade é a extinção do contrato em caso de descumprimento grave das obrigações contratuais pela concessionária.
Essa é a forma de sanção mais grave a que concessionária está submetida, explica Vera Monteiro, professora de Direito Administrativo da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP).
O processo é feito em caso de falhas gravíssimas ou reincidência destas falhas. Antes, a empresa pode ser penalizada com sanções como multas.
“Quando ela já foi sancionada, multas já foram aplicadas e ainda assim a empresa tem uma situação reincidente ou deixa de cumprir alguma obrigação muito séria prevista no contrato, a União pode decretar a caducidade, feita a partir de uma notificação. Neste caso, a empresa tem a oportunidade de se defender”, explica Monteiro.
Ela pontua que o processo não é simples: a caducidade exige a comprovação da culpa da concessionária em um processo administrativo, que demanda tempo e análise técnica.
“A empresa pode explicar, por exemplo, que essa falha foi culpa de terceiros ou de uma situação multifatorial, como eventos climáticos inesperados ou podas de árvores que não foram feitas. Ela tem chance de defesa durante o processo administrativo, que será avaliada pela área técnica”, diz.
Na segunda-feira, Ricardo Nunes disse que “o presidente da República poderia, numa única ação, fazer a intervenção nesse serviço. E até agora não fez”.
Monteiro diz que a declaração do prefeito é uma “meia verdade”.
“A extinção do contrato é realmente feita por um decreto do presidente da República. Mas, para isso acontecer, ele precisa ter embasamento em um processo administrativo sancionatório, que recomendou esta extinção. Ou seja, o contrato não é interrompido automaticamente e de forma rápida.”
Existem precedentes de quebra de contratos?
A Aneel já enviou recomendação da caducidade ao Ministério de Minas e Energia em dois casos - no Amapá e no Amazonas.
Em 2007, a Aneel recomendou ao ministério a caducidade da concessão da Companhia Energética do Amapá (CEA). A empresa controlada pelo governo do Estado não tinha condições operacionais e econômicas de prestar o serviço público, na visão da agência. O pedido foi encaminhado dez anos após trocas de ofícios e recomendações à empresa.
Um caso mais recente é o da Amazonas Energia S.A.
Em novembro de 2023, a Aneel decidiu encaminhar a recomendação de caducidade da empresa que opera no estado do Amazonas devido ao descumprimento de cláusulas contratuais referentes à capacidade de gerir os recursos financeiros.
Na recomendação, a agência destacou o caixa negativo e alto endividamento da empresa, com episódios de inadimplência.
Antes da recomendação da caducidade, a Aneel pediu à empresa um plano de recuperação da condição econômica ou a transferência de controle societário. A distribuidora indicou a Green Energy Soluções em Energia para assumir o controle societário, mas não comprovou a capacidade técnica e financeira para assumir a concessão.
O Ministério de Minas e Energia, no entanto, estimou um custo de R$ 2,7 bilhões para a União se o processo de caducidade da Amazonas Energia fosse iniciado e não levou o processo adiante.
Como alternativa à extinção do contrato, o governo publicou uma medida provisória para facilitar a troca de comando da concessão, que tem histórico de sucessivos déficits e elevado endividamento. O caso ainda aguarda desfecho.
Aneel não descarta medidas severas
A professora de direito administrativo na Universidade Presbiteriana Mackenzie Lilian Pires também reforça que somente após uma recomendação da área técnica que o processo é encaminhado ao Ministério de Minas e Energia, que pode decretar a caducidade do contrato.
Ela diz que o processo “não é uma canetada” e também destaca que é demorado.
Por isso, ela não vê chances de uma quebra do contrato de concessão da Enel antes de 2028, quando a concessão chega ao fim. “A abertura de um processo de caducidade agora talvez terminaria muito próximo do fim do contrato”, diz.
Ela destaca que a agência reguladora precisa ser transparente sobre as ações tomadas em relação às falhas e sanções da Enel.
“É muito importante que a agência informe quais são os passos que ela tem tomado com relação os inadimplementos da concessionária, como está sendo apurada a qualidade da prestação do serviço e tem se comportado com relação a essa prestação de serviço, porque essa é uma responsabilidade que é da agência”, diz.
Em nota enviada à BBC News Brasil, a Aneel afirmou que está conduzindo uma “apuração rigorosa e técnica” sobre a atuação da Enel em São Paulo.
A agência afirmou que está acompanhando diariamente a articulação com outras concessionárias de serviço público de distribuição e transmissão e com os poderes públicos para o restabelecimento da energia elétrica em imóveis afetados.
No plano administrativo, a Aneel afirmou que será encaminhada intimação formal à empresa italiana que integra relatório de avaliação da continuidade do contrato de concessão.
“Caso sejam constatadas falhas graves ou negligência na prestação do serviço, a Agência não hesitará em adotar as medidas sancionatórias previstas em lei, que podem incluir desde multas severas, intervenção administrativa na empresa e abertura de processo de caducidade da concessão da empresa”, afirmou a agência.
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