ORIENTE MÉDIO

Guerra no Líbano: 'Meus patrões me trancaram em casa e fugiram para se salvar'

Trabalhadoras domésticas abandonadas pelos patrões no Líbano compartilham suas histórias com a BBC.

Cerca de 170 mil trabalhadores migrantes vivem no Líbano, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM) -  (crédito: BBC)
Cerca de 170 mil trabalhadores migrantes vivem no Líbano, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM) - (crédito: BBC)

Quando os ataques aéreos israelenses atingiram a casa dos seus patrões no sul do Líbano, Andaku (nome fictício) se viu sozinha, trancada lá dentro e aterrorizada.

A queniana de 24 anos trabalha no Líbano como trabalhadora doméstica há oito meses, mas diz que o último mês foi o mais difícil, uma vez que Israel intensificou os bombardeios no sul do país.

"Houve muitos bombardeios. Estava demais. Meus patrões me trancaram em casa, e saíram para salvar suas próprias vidas", ela contou à BBC.

O som das explosões deixou Andaku traumatizada. Ela perdeu a conta de quantos dias ficou sozinha em casa até seus patrões voltarem.

"Quando eles voltaram, me expulsaram. Nunca me pagaram, e eu não tinha para onde ir", ela disse, acrescentando que teve a sorte de ter dinheiro suficiente para pegar um ônibus para a capital, Beirute.

A história de Andaku não é a única — tampouco a primeira deste tipo.

Na sexta-feira (4/10), autoridades da Organização das Nações Unidas (ONU) informaram que a maioria dos quase 900 abrigos do Líbano estavam lotados, manifestando preocupação com dezenas de milhares de trabalhadores domésticos, na sua maioria mulheres, que estão sendo "abandonados" pelos patrões desde a escalada da tensão no mês passado.

Grupo de mulheres sentadas de costas para a câmera no Líbano.
BBC
Cerca de 170 mil trabalhadores migrantes vivem no Líbano, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM)

De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), uma agência da ONU, há cerca de 170 mil trabalhadores migrantes no Líbano; muitos deles são mulheres do Quênia, Etiópia, Sudão, Sri Lanka e Bangladesh.

"Estamos recebendo cada vez mais denúncias de trabalhadores domésticos migrantes sendo abandonados pelos patrões libaneses, sejam deixados nas ruas ou nas casas, enquanto os patrões fogem", afirmou Mathieu Luciano, chefe do escritório da OIM no Líbano, durante uma coletiva de imprensa em Genebra.

Muitos trabalhadores domésticos estrangeiros viajam para trabalhar no Líbano para poder ajudar financeiramente suas famílias em seus países de origem.

O salário médio mensal dos trabalhadores domésticos africanos é estimado em cerca de US$ 250 (R$ 1,4 mil), enquanto os asiáticos podem ganhar até US$ 450 (R$ 2,5 mil).

Os trabalhadores domésticos estrangeiros precisam se submeter ao sistema da Kafala (patrocínio) no Líbano, que grupos de direitos humanos descrevem como "perigoso".

O sistema não garante direitos de proteção aos trabalhadores migrantes — e permite que os empregadores confisquem seus passaportes e retenham seus salários. Os trabalhadores passam por agências com sede no Líbano.

"A falta de proteção legal no sistema da Kafala, combinada com a restrição da circulação, significa que muitos podem ficar presos em condições de exploração. Isso resultou em casos de abuso, isolamento e trauma psicológico entre os trabalhadores migrantes", afirmou Luciano.

"Além disso, temos conhecimento de casos de migrantes que foram trancados dentro das casas de cidadãos libaneses que estão fugindo, para cuidar das propriedades."

Sem ter para onde ir

Mão de uma mulher segurando fios coloridos de lã sobre uma mesa
BBC
Muitos trabalhadores domésticos geralmente não têm onde buscar ajuda

Mina (nome fictício), que é de Uganda, trabalha como trabalhadora doméstica no Líbano há um ano e quatro meses.

Ela contou à BBC que foi maltratada pela família para quem trabalhava e decidiu fugir e voltar para sua agência.

Na esperança de receber ajuda, Mina disse que ficou chocada ao saber que teria que trabalhar para outra família em um contrato de dois anos antes de poder voltar para casa.

"Quando voltei ao escritório [da agência], disse a eles que já havia trabalhado o suficiente para poder pagar a passagem e voltar para casa. Eles pegaram meu dinheiro, e me pediram para trabalhar em uma casa por dois anos para poder voltar", relata a trabalhadora doméstica de 26 anos.

O fato de ter que conviver com os sons ensurdecedores das explosões fez com que a saúde mental de Mina fosse afetada. Ela não conseguia realizar adequadamente as tarefas domésticas que eram atribuídas a ela e, por isso, pediu ao novo patrão para ir embora.

Ela estava trabalhando para uma família em Baalbek, uma cidade no nordeste do Líbano, no Vale do Bekaa.

"[A família] me bateu, me empurrou e me expulsou... Havia muitas bombas naquela época. Quando saí, não tinha para onde ir", diz ela.

Fumaça subindo em meio às trocas de hostilidades em andamento entre o Hezbollah e as forças israelenses, em Tiro, no sul do Líbano, em 7 de outubro de 2024.
Reuters
Israel intensificou o bombardeio ao sul do Líbano na segunda-feira, atingindo cidades e vilarejos ao redor de Tiro

Outra trabalhadora doméstica do Quênia compartilhou sua história com a BBC.

Fanaka, de 24 anos, conta que sua agência a enviava para trabalhar em casas diferentes a cada dois meses — e que tem sofrido com dores de cabeça constantes.

"Tenho tentado dar o meu melhor no trabalho, mas ninguém nasce perfeito", diz ela.

As mulheres revelam que enfrentaram muitos desafios enquanto viviam nas ruas, já que muitos abrigos se recusaram a acolhê-las, alegando que estavam reservados para libaneses desalojados, e não para estrangeiros.

Todas as três conseguiram chegar até a Caritas Lebanon — uma ONG libanesa que oferece ajuda e proteção aos trabalhadores migrantes desde 1994.

Em gravações de áudio enviadas à BBC, trabalhadores migrantes de Serra Leoa afirmam que dezenas deles permanecem nas ruas de Beirute e necessitam desesperadamente de alimentos.

Outros relataram à imprensa local que tiveram a entrada negada em abrigos organizados pelo governo porque não são libaneses.

A BBC entrou em contato com as autoridades locais, que negam qualquer forma de discriminação.

Fontes do Ministério da Educação disseram à BBC: "Nenhum centro específico foi designado para trabalhadores domésticos estrangeiros, mas, ao mesmo tempo, eles não tiveram sua entrada recusada".

Entende-se que alguns trabalhadores estão evitando os abrigos oficiais, temendo repercussões em relação à sua documentação legal incompleta.

Hessen Sayah Korban, chefe do departamento de proteção da Caritas Lebanon, diz que sua ONG está abrigando atualmente cerca de 70 trabalhadores domésticos migrantes, que são principalmente mulheres com filhos.

Ela afirma que é necessário mais financiamento para poder fornecer abrigo para até 250 trabalhadores domésticos; todos foram abandonados pelos patrões ou estão sem teto e tiveram seus documentos oficiais confiscados.

"Estamos tentando fornecer a eles toda a ajuda necessária; pode ser jurídica, mental ou física", explica Korban.

Ela acrescenta que muitos trabalhadores domésticos precisam de ajuda com sua saúde mental, porque ficaram traumatizados, devido a conflitos dentro das famílias para as quais trabalharam, ou como resultado do conflito mais amplo no país.

Desde o início de outubro, a OIM recebeu mais de 700 novas solicitações de pessoas em busca de ajuda para voltar aos seus países de origem.

A Caritas, junto a outras ONGs, está em contato com várias embaixadas e consulados para organizar a deportação segura de trabalhadores domésticos abandonados de volta aos seus países.

"É um processo que está em andamento. Estamos buscando um retorno seguro às suas cidades de origem, em coordenação com a OIM e os serviços de segurança libaneses", diz ela.

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BBC
Manal Khalil e Ethar Shalaby - BBC News Arabic
postado em 10/10/2024 04:34 / atualizado em 10/10/2024 09:05
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