O cozinheiro e cabeleireiro Diogo Viroli, 44, depositou seu voto pela primeira vez em 10 anos neste domingo (6/10) para escolher um vereador e o prefeito de São Paulo. Durante a última década, ele morou nas ruas da cidade, como pelo menos outras 30 mil pessoas.
“Estou em vulnerabilidade, mas estou correndo atrás da minha autonomia. Um dos primeiros passos foi esse de regularizar meus documentos e o título. Passei várias eleições sem votar”, conta Diogo.
“Vejo tantos idosos nas ruas, sem nenhum parente, sem nenhum benefício ou dinheiro para poder alugar um cantinho. Fico triste e penso em mim. Se eu continuar nessa vida, vou ser mais um e é uma coisa que não quero. Comecei a pensar em futuro.”
Depois de deixar o local de votação no início da tarde deste domingo no bairro Paraíso, na zona sul da cidade, ele tentava explicar a sensação que teve ao apertar as teclas das urnas novamente. “Vesti minha melhor roupa [para votar]. É como voltar a ser cidadão”, diz.
“Antes, eu achava que meu voto não fazia diferença. Mas hoje vejo que é importante. Se a gente não votar, estamos deixando os outros decidirem por nós.”
Diogo nasceu no sul da Bahia, no município de Floresta Azul. Ele e a família se mudaram para a capital paulista após a morte de seu pai em 2010, quando ele tinha 30 anos. “Tive um problema com dependência [química] assim que cheguei na cidade, e foi quando fui para a situação de rua, para não machucar minha família com essa doença”, diz.
Ele frequenta diariamente o Chá do Padre, um dos pontos de assistência à população de rua da Ação Social Franciscana, o Sefras, na capital paulista. Foi na unidade que Diogo participou de um mutirão de regularização da sua documentação em maio deste ano.
“Conheci esse espaço de convivência para almoçar e tomar banho. Aqui, conheci assistentes sociais. Hoje estou bem, faço tratamento psiquiátrico, tomo remédios para a dependência e estou trabalhando em um projeto da prefeitura de zeladoria, de limpeza de calçadas.”
Falta de documentação é barreira para voto
O frei Marx Rodrigues trabalha em projetos do Sefras com pessoas em situação de rua em São Paulo e no Rio de Janeiro há dez anos. Ele explica que este público tem um problema crônico com documentação.
“É muito comum essas pessoas perderem seus documentos, principalmente porque não têm um lugar para guardá-los, nem alguém que possa ajudá-las nesse processo. A perda dos documentos é uma expressão de uma série de violências que essas pessoas sofrem diariamente”, afirma.
“Alguém que está há muito tempo na rua pode perder todos os documentos — não apenas o RG, mas também o CPF, a carteira de trabalho, e até a certidão de nascimento. Outra questão que enfrentamos é o tráfico de pessoas ou trabalho análogo à escravidão. Muitas vezes, alguém sai de casa em busca de uma vida melhor, mas acaba sendo aliciado e fica sem documentos.”
Rodrigues conta que foi este diagnóstico motivou uma ação mais organizada para regularizar a documentação dessas pessoas. “É isso que os mutirões buscam fazer: dar a essas pessoas a dignidade de existir formalmente, de ter seus documentos.”
Em 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua com o objetivo de dar atendimento prioritário e sem burocracia nos tribunais brasileiros, possibilitando o acesso a serviços como identificação civil básica e alistamento eleitoral.
O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) informou à BBC News Brasil que participa de ações do tipo desde 2022, com a expedição de documentos e regularização de cadastros. Desde o início do projeto do setor, foram expedidos 3.023 títulos eleitorais no Estado de São Paulo. Na capital, foram 1.946.
Uma resolução do TSE de 2021 possibilitou que eleitores em situação de rua ou quem não possui moradia ou residência fixa possam fazer o alistamento no domicílio em que se encontram, sem a necessidade de apresentação de comprovante de domicílio.
O órgão afirma que não há número de eleitores em situação de rua, já que não há um campo no cadastro nacional de eleitores específico para registro desta informação.
Dados sobre população de rua são incertos
O esforço da Justiça Eleitoral ainda impacta de forma tímida a população de rua: o número de títulos expedidos representa 6,1% da população de rua em São Paulo.
De acordo com o último Censo da População em Situação de Rua, realizado a pedido da da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) pela empresa Qualitest em 2021, 31.884 estavam nas ruas da cidade. O dado oficial revela que a população em situação de rua cresceu 31% em dois anos. Em 2019, eram 24.344 pessoas.
Mas este número pode ser muito maior. Segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua/POLOS), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 85.530 pessoas estão vivem nas ruas no município de São Paulo, segundo levantamento realizado em agosto deste ano.
O estudo é feito com base dados oficiais, como CadÚnico e outras informações, como dados do SUS e de segurança pública.
O número levantado pelo OBPopRUA supera a população de cidades inteiras como Vinhedo ou São Roque — ambos municípios do interior do estado — e representa um aumento de 54,5% em relação a 2018, quando 38.887 pessoas estavam nas ruas na capital paulista.
O pesquisador André Freitas Dias, coordenador do OBPopRua, lembra que não existem censos específicos realizados pelo IBGE sobre este tema. "Nunca tivemos a inclusão da população em situação de rua em qualquer censo realizado no Brasil. A partir de 2012, o que tivemos foi a inclusão da população em situação de rua no cadastro único, o CadÚnico, para programas sociais do governo federal, que tem se mostrado uma importantíssima base de dados
“Os municípios são responsáveis pela inserção das pessoas em situação de rua e outras populações vulnerabilizadas no CadÚnico, assim como também são responsáveis pela sua atualização. Ou seja, não há nenhum sentido a prefeitura de São Paulo ela questionar os números utilizados pelo Observatório, que são os números levantados pelos próprios agentes públicos da prefeitura de São Paulo.”
Os estudos diagnósticos e censitários contratados pelas prefeituras, afirma Dias, deveriam ser complementares aos dados oficiais e públicos levantados pelos agentes públicos da prefeitura. "Eles não são concorrentes, eles deveriam ser complementares. Agora a prefeitura de São Paulo prefere, em vez de valorizar e fortalecer o CadÚnico, minimizar os dados a partir de um censo contratado por ela mesmo."
O levantamento mostra que 83% encontram-se na faixa etária de 18 a 59 anos. Ou seja, são aptos a votar.
No município de São Paulo:
- 70% das pessoas situação de rua são negras, 29% brancas e 1% indígenas e amarelas;
- 79% do sexo masculino e 21% do feminino;
- 86% sobrevivem com até R$ 109,00 por mês;
- 5% são crianças e adolescentes (de 0 a 17 anos);
- 12% são pessoas idosas , com 60 anos e mais;
- 83% estão na faixa etária entre 18 e 59 anos.
Sejam os dados oficiais ou levantados por outras organizações, os números apontam que o número de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo cresceu nos últimos anos.
Diogo diz que esses números são visíveis na rotina da cidade. “Quando eu cheguei aqui, não havia tanta gente na rua. Acho que foi a pandemia, muitos cortes de trabalho, e também o psicológico das pessoas foi afetado. Quem tinha problemas com álcool ou drogas voltou para o uso, e isso fez com que voltassem para a rua. Sem apoio, eles não conseguem sair dessa sozinhos”, argumenta.
Propostas para a população de rua
A situação das pessoas vivendo nas ruas da capital paulista, junto com a Cracolândia, como ficou conhecida a área itinerante que concentra pessoas que fazem uso de crack no centro de São Paulo, é um dos grandes temas debatidos nas eleições municipais.
A organização não governamental SP Invisível, entidade que promove ações sociais para pessoas em situação de rua, tem trabalhado o tema das eleições desde o início do ano, diz André Soler, fundador da ONG.
“Desde o início dessa jornada eleitoral, estivemos neste movimento de criar iniciativas para que a população de rua tivesse mais participação no ano eleitoral. Acreditamos que quem pode trazer as melhores soluções é a própria população de rua”.
Numa destas ações, a organização criou o “Partido Invisível”, uma sigla fictícia para ouvir propostas de quem está nas ruas. Temas como segurança alimentar, geração de trabalho e capacitação profissional, mais centros de acolhimento com horários flexíveis e reversão de imóveis abandonados em moradias dignas.
Soler avalia que, de maneira geral, os candidatos que disputam a prefeitura têm propostas para o segmento. “Mas vale avaliar se eles escutaram essa população para desenvolver suas propostas”, diz.
Para Diogo, a prefeitura tem que investir mais em programas de assistência. “As pessoas precisam de emprego e, principalmente, de acompanhamento psicológico. Não adianta só dar uma cama e um prato de comida. Precisamos de oportunidades e de apoio para nos reerguermos..”
Diogo diz que poucos dos que frequentam o mesmo centro de acolhida
Frei Marx Rodrigues analisa que votar acaba não sendo prioridade por estas pessoas terem questões urgentes de sobrevivência imediata, como a moradia e a alimentação.
Por isso, ele diz, muitas pessoas em situação de rua não exercem seu direito de votar. Ou, quando exercem, são aliciadas. “É muito comum, inclusive, que nesse período de campanhas eleitorais, a população de rua seja assediada por pessoas que dizem querer ajudá-las, oferecendo uma quentinha, por exemplo”, diz.
“Historicamente, essas pessoas nunca tiveram acesso pleno a seus direitos e continuam à margem das políticas públicas. Mesmo que o voto seja um direito fundamental, quando se está lutando pela sobrevivência, é compreensível que isso fique em segundo plano.”
Para Rodrigues, é preciso ampliar as ações de participação política destes eleitores. “Existe um processo de acreditar que essas pessoas em situação de rua não têm o direito de decidir o próprio futuro, e muito menos o futuro dos outros. Para muitos, o que cabe a essas pessoas é apenas receber uma roupa velha ou as sobras de uma panela. Mas, decidir o futuro delas, isso não cabe”, continua.
“É aí que a política de assistência social deve entrar e mostrar que essas pessoas não são apenas corpos famintos e com frio, mas sim, cidadãos com direitos, incluindo o direito de escolher o próprio futuro.”
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