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O que aconteceu no Líbano durante as duas grandes invasões de Israel — e quais foram as consequências delas

Israel invadiu o Líbano em seis ocasiões. Em duas delas, grandes marcas foram deixadas na sociedade libanesa.

Milhares de refugiados e civis foram mortos indiscriminadamente no massacre de Sabra e Shatila durante a invasão de 1982 -  (crédito: Getty Images)
Milhares de refugiados e civis foram mortos indiscriminadamente no massacre de Sabra e Shatila durante a invasão de 1982 - (crédito: Getty Images)

Nos últimos dias, Israel lançou uma série de ataques militares em alvos específicos no sul do Líbano, onde opera o grupo armado xiita Hezbollah.

O exército israelense também mobilizou tropas e alertou centenas de milhares de libaneses para deixarem suas casas e se mudarem para o norte do país.

Entretanto, os bombardeios em Beirute, a capital do Líbano, que fica mais ao centro do país, continuam a acontecer e até se intensificaram.

Todos esses desdobramentos sugerem que a escalada da nova operação no Líbano será maior do que o inicialmente anunciado.

Embora esta seja a primeira incursão israelense no Líbano desde 2006, as gerações passadas foram marcadas por um histórico de invasões.

Desde a independência do Líbano em 1943, Israel fez operações militares em território libanês em seis ocasiões.

A primeira delas ocorreu em 1978 e tinha como objetivo expulsar militantes palestinos da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) do sul do país.

"A operação foi curta, durou menos de uma semana, não atingiu todos os objetivos e as Nações Unidas exigiram a retirada das forças israelenses", resume Mayssoun Sukarieh, professor de estudos do Oriente Médio no King's College London, no Reino Unido.

As origens do conflito

Pode-se dizer que o atual conflito entre Hezbollah e Israel no sul do Líbano, como muitos outros que acometem a região, tem as suas origens na "nakba" ou "a catástrofe palestina".

Este foi um período histórico em que mais de 750 mil palestinos foram forçados a fugir ou acabaram expulsos de suas casas depois que Israel proclamou a sua independência do Mandato Britânico da Palestina em 14 de maio de 1948 e durante a Guerra Árabe-Israelense, que começou no dia seguinte e durou 15 meses.

Sabra e Shatila após o massacre em Beirute, no Líbano, em 27 de setembro de 1982
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Milhares de refugiados e civis foram mortos indiscriminadamente no massacre de Sabra e Shatila durante a invasão de 1982

Como resultado da "nakba", mais de 100 mil palestinos, principalmente das áreas do norte do que era então conhecido como Palestina e Galileia, acabaram no Líbano.

A eles juntaram-se outras ondas de refugiados que vieram de Jerusalém Oriental, da Cisjordânia e da Faixa de Gaza durante as subsequentes guerras árabe-israelenses que aconteceram em 1956 e 1967.

A partir do Acordo do Cairo em 1969, assinado pelo presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat, e pelo chefe do exército libanês, os campos de refugiados ficaram sob o controle de um corpo da polícia militar palestina.

A OLP, que foi criada em 1964 com o objetivo de libertar os palestinos de Israel por meio da luta armada, estabeleceu uma espécie de Estado dentro do Líbano.

Neste contexto, milhares de combatentes palestinos refugiaram-se e foram treinados em campos que estavam fora da jurisdição do exército libanês.

O governo do então primeiro-ministro de Israel, Menachem Begin, considerou que a presença de militantes da OLP representava um problema de segurança e decidiu agir em 1978 e depois em 1982.

Tropas israelenses no oeste de Beirute em 14 de setembro de 1982
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Tropas israelenses no oeste de Beirute em 14 de setembro de 1982

A invasão israelense do Líbano em 1982 ocorreu em meio a uma sangrenta guerra civil desencadeada após um ataque das Falanges Libanesas, uma milícia cristã de direita aliada a Israel, contra um ônibus que transportava refugiados palestinos.

A guerra civil libanesa, que durou de 1975 a 1990, foi marcada por um aumento dos ataques palestinos contra alvos israelenses em todo o mundo.

Um destes ataques, ocorrido em Londres, desencadearia a ira de Israel.

A invasão mais sangrenta até hoje

Após uma tentativa de assassinato do embaixador israelense em Londres, Menachem Begin deu início a uma invasão do Líbano no dia 6 de junho que levou o exército do país às ruas de Beirute.

Por meio de uma operação terrestre, Israel tentava enfraquecer ou mesmo expulsar a OLP do Líbano.

Especialistas dizem que os líderes israelenses também procuraram impor o seu aliado Bachir Gemayel, chefe das Falanges Libanesas, como presidente do Líbano — e, assim, trazer a nação árabe para a esfera de influência de Israel.

Foram dois meses de batalhas e muita destruição até que um acordo foi assinado em agosto, no qual milhares de combatentes da OLP concordaram em deixar o país.

Ao mesmo tempo, os Estados Unidos garantiram a proteção da população civil libanesa após a evacuação das forças da OLP.

Até então, o plano israelense parecia ter sido bem sucedido.

Em 23 de agosto, Gemayel, o chefe das Falanges Libanesas, foi eleito presidente pelo parlamento do país para um mandato de seis anos.

Mas ele nunca assumiria a presidência.

Gemayel foi morto num ataque realizado no dia 14 de setembro, durante uma reunião de seu partido no bairro de Achrafieh, em Beirute.

Sabra e Shatila: um massacre contra refugiados palestinos

Dois dias após o assassinato de Gemayel, milícias cristãs apoiadas por Israel entraram em dois campos de refugiados em Beirute e massacraram um grande número de palestinos.

"A morte de Gemayel desencadeou a ira dos falangistas. Os israelenses cercaram os campos de Sabra e Shatila e deixaram as milícias das Falanges Libanesas entrarem e massacrarem todos que encontraram", diz o professor Mayssoun Sukarieh.

Os falangistas entraram nos campos à noite, momento em que muitos dos refugiados dormiam, depois de lançarem sinalizadores para iluminar o local.

"Eles mataram famílias inteiras que dormiam. Alguns acordaram a tempo, começaram a chamar pelos outros e a gritar que os israelenses haviam chegado e estavam matando pessoas", complementa Sukarieh.

Família de refugiados que conseguiu fugir dos combates entre guerrilheiros palestinos e militantes xiitas em 1982
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Família de refugiados que conseguiu fugir dos combates entre guerrilheiros palestinos e militantes xiitas em 1982

Muitos buscaram abrigo na mesquita local. Mas os falangistas tomaram o prédio e assassinaram aqueles que lá estavam.

Neste episódio, também foram relatados casos de violência sexual contra mulheres palestinas.

Uma enfermeira que trabalha no hospital Akka, perto de Chatila, disse à BBC que os falangistas fizeram disparos de forma indiscriminada.

"Uma criança me contou que os falangistas arrombaram a porta e atiraram em toda a família; ele foi o único sobrevivente”, disse ela.

Os militantes também sequestraram outras duas enfermeiras que trabalham no mesmo hospital.

Uma delas conseguiu escapar e contou à imprensa que a colega havia sido estuprada antes de ser morta.

Estima-se que entre 2 mil e 3,5 mil pessoas morreram somente neste episódio sangrento.

"O que aconteceu foi horrível. Alguns chamam de massacre, outros argumentam que foi um genocídio", diz Sukarieh.

Pessoas cobrem o rosto para lidar com cheiro de decomposição enquanto começam a limpar os restos mortais dos milhares de refugiados palestinos que foram mortos no massacre de Sabra e Shatila
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Pessoas cobrem o rosto para lidar com cheiro de decomposição enquanto começam a remover os restos mortais dos milhares de refugiados palestinos que foram mortos no massacre de Sabra e Shatila

Os israelenses retiraram-se do local três meses após o início da invasão, mas criaram uma zona-tampão dentro do Líbano.

Do lado libanês, cerca de 20 mil pessoas — a maioria civis — foram mortas.

Do lado israelense, 654 soldados morreram.

Israel continuou a ocupar a maior parte do sul do Líbano até 3 de setembro de 1983, quando se retirou para o sul do rio Awali, devido ao aumento das baixas israelenses em ataques de guerrilheiros xiitas.

Nesse mesmo ano, o Ministro da Defesa de Israel durante o massacre, Ariel Sharon, teve que renunciar ao cargo após uma investigação feita no país sobre o que aconteceu no Líbano.

Em 2001, Sharon seria eleito chefe do governo de Israel.

Um novo inimigo

Uma das consequências da grande invasão israelense no Líbano foi promover a criação do Hezbollah, dizem analistas.

Alguns líderes xiitas do Líbano queriam uma resposta militar à invasão e romperam com o Movimento Amal, um grupo político que se tornou uma das mais importantes milícias muçulmanas xiitas durante a Guerra Civil Libanesa (1975-1990).

Os rebeldes formaram um movimento militar xiita que recebeu apoio militar e logístico da Guarda Revolucionária Iraniana e foi denominado "Amal Islâmico".

Pouco depois, esta organização aliou-se a outros grupos e criou o Hezbollah.

A fundação do grupo mudaria o alvo das futuras invasões israelenses no Líbano.

"O objetivo inicial das invasões era livrar-se dos grupos paramilitares. Mas o que elas fizeram foi desencadear uma resistência mais severa contra Israel a partir do Amal e, mais tarde, com o Hezbollah", avalia Vanessa Newby, especialista em Oriente Médio da Universidade de Leiden, na Holanda.

"Há um argumento que sugere que o aumento do uso da força simplesmente gerou uma resistência mais violenta por parte da população libanesa", acrescenta ela.

Soldados israelenses retornam ao país vindos da fronteira com o Líbano em 9 de agosto de 2006
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Soldados israelenses retornam ao país vindos da fronteira com o Líbano em 9 de agosto de 2006

Em abril de 1996, as forças israelenses atacaram pela primeira vez o novo inimigo, o Hezbollah, em resposta a uma série de ataques com foguetes feitas pelo grupo. Essa operação durou pouco mais de duas semanas.

Estima-se que, além de 13 combatentes do Hezbollah, cerca de 250 civis foram mortos no Líbano.

Nesse ataque, não foram registradas mortes do lado israelense.

A operação foi limitada, mas as tensões entre Israel e o Hezbollah continuaram.

As Forças de Defesa de Israel (IDF) retiraram-se do sul do Líbano em 25 de maio de 2000 e, em junho, as Nações Unidas estabeleceram uma "Linha Azul", ou uma fronteira não oficial entre o Líbano e Israel.

E esse vácuo deixado pelas FDI foi preenchido pelo Hezbollah.

A fracassada invasão do Líbano em 2006

O Hezbollah nunca reconheceu a legitimidade da "Linha Azul" traçada pelas Nações Unidas.

Para o grupo, Israel continuou a ocupar ilegalmente o território libanês.

Em 2006, o Hezbollah iniciou uma série de ataques com foguetes contra cidades israelenses.

Em 12 de julho, um grupo de combatentes do grupo cruzou a fronteira com Israel, atacou dois veículos militares, matou oito soldados e fez dois reféns.

A resposta israelense foi implacável e envolveu uma operação militar que incluiu o bloqueio e um intenso bombardeio de cidades, vilas, aeroportos, pontes e muitas outras estruturas importantes no Líbano.

A guerra durou 33 dias, durante os quais o Hezbollah também lançou uma saraivada de foguetes contra Israel.

Segundo dados oficiais, 1.191 pessoas morreram no Líbano, a maioria delas civis. Em Israel, 121 soldados e 44 civis foram mortos.

O Hezbollah ficou praticamente intacto.

A Comissão Winograd, criada pelo governo israelense para avaliar o resultado da guerra, concluiu em 2008 que a operação foi um fracasso e que Israel tinha iniciado "uma longa guerra, que terminou sem uma vitória militar clara".

O conflito atual

Quase duas décadas depois, Israel lançou outra invasão que o governo classifica como "limitada, localizada e direcionada" no sul do Líbano contra alvos do Hezbollah.

Mas as evidências mostram que este não é o caso.

As FDI desencadearam uma campanha aérea implacável sobre o Líbano, atingindo mais de 3,6 mil alvos ligados ao Hezbollah.

Para os analistas, esta é a operação aérea mais intensa dos últimos vinte anos.

Os ataques conseguiram, entre diversos objetivos, matar Hassan Nasrallah, líder histórico do Hezbollah.

Até o momento, outras 1,4 mil pessoas foram mortas e 900 mil foram deslocadas desde que Israel iniciou a sua operação transfronteiriça, de acordo com o governo libanês.

A analista Vanessa Newby acredita que a mais recente invasão israelense poderá desencadear uma guerra mais ampla no Oriente Médio.

Mayssoun Sukarieh, por sua vez, tem dúvidas sobre se Israel conseguirá erradicar o Hezbollah, como planejado.

"Ainda é muito cedo para saber se esse objetivo será alcançado", acredita ele.

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BBC
Norberto Paredes - BBC News Mundo
postado em 05/10/2024 11:07 / atualizado em 05/10/2024 14:51
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